Está marcada para hoje (quarta-feira, 12.09.2007) a sessão secreta do Senado Federal para julgamento do Senador Renan Calheiros (atual Presidente daquela Casa Legislativa), acusado de prática de conduta incompatível com o decoro parlamentar. Ato incompatível com o decoro parlamentar é, segundo a Constituição Federal, “o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas” (art. 55, § 1º), além de outros casos definidos no regimento interno. Em todas essas situações, a penalidade prevista é a perda do mandato (Art. 55, II), que gera a conseqüência da inelegibilidade “para as eleições que se realizarem durante o período remanescente do mandato para o qual foram eleitos e nos oito anos subseqüentes ao término da legislatura” (art. 1º, inciso I, alínea “b” da Lei Complementar nº 64/90, com redação conferida pela Lei Complementar nº 81/94). Formalizada contra membro do Congresso Nacional uma acusação de prática de conduta incompatível com o decoro parlamentar, é instaurado um devido processo legal político-parlamentar, com específicas regras previstas na própria Carta Política e regulamentações constantes do regimento interno das respectivas Casas Legislativas (Câmara dos Deputados e Senado Federal), sem prejuízo de eventual responsabilização jurídico-penal a cargo do Poder Judiciário. No caso do processo político-parlamentar em que se imputa ao acusado a prática de ato incompatível com o decoro, cabe aos próprios membros da Casa Legislativa decidir pela perda do mandato, em votação secreta e pelo quorum qualificado da maioria absoluta (art. 55, § 2º). A Constituição-cidadã (assim batizada pelo ex-Deputado Ulysses Guimarães, que presidiu a Assembléia Nacional Constituinte de 1987-88) redemocratizou o Estado Brasileiro, garantindo que a República Federativa do Brasil constitua-se O exercício direto pelo povo de sua soberania se dá através dos mecanismos do plebiscito, referendo e iniciativa popular de projetos de lei (art. 14, incisos I, II e III, combinado com art. 61, § 2º da Carta Política), enquanto o exercício da soberania por meio de representantes eleitos se dá, sobretudo, mediante o voto direto, secreto, universal e periódico (art. 14, caput). Assim, o sistema democrático-representativo-eleitoral somente deve ser compreendido na perspectiva de que os representantes eleitos se constituem em instrumentos do exercício, pelo povo, de sua soberania. Nessa diretriz, a atuação dos detentores de mandatos eletivos deve ser pública, transparente, permitindo ao povo-eleitor o seu acompanhamento e o monitoramento constante de seus desempenhos. Daí que, em regra, as votações e as sessões no âmbito do Poder Legislativo são abertas, de modo a assegurar que o eleitor-cidadão fiscalize cotidianamente o exercício das atividades políticas de seus representantes. Por isso mesmo que a Constituição não se preocupa em mencionar o caráter aberto das sessões e das votações legislativas, só tendo a preocupação de fazer menção expressa no caso excepcional de sessão secreta e voto secreto. É dizer: onde a Lei Maior não faz referência expressa ao caráter secreto do voto ou da sessão, deve ser aplicada a regra geral de sessão aberta e voto aberto, pouco importando eventual disposição regimental em contrário que, se existir, padecerá de vício de inconstitucionalidade material. Assim é que a Carta Magna menciona apenas as seguintes situações em que o voto no Poder Legislativo será secreto: 1 – competência privativa do Senado Federal para “aprovar previamente, por voto secreto, após argüição pública, a escolha de: a) magistrados, nos casos estabelecidos nesta Constituição; b) Ministros do Tribunal de Contas da União indicados pelo Presidente da República; c) Governador de Território; d) Presidente e diretores do banco central; e) Procurador-Geral da República; f) titulares de outros cargos que a lei determinar” (art. 52, III); 2 – competência privativa do Senado Federal para “aprovar previamente, por voto secreto, após argüição em sessão secreta, a escolha dos chefes de missão diplomática de caráter permanente” (art. 52, IV); 3 – competência privativa do Senado Federal para “aprovar, por maioria absoluta e por voto secreto, a exoneração. de ofício, do Procurador-Geral da República antes do término de seu mandato” (art. 52, XI); 4 – deliberação sobre perda de mandato parlamentar em processo de cassação: “Nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa” (art. 55, § 2º); 5 – deliberação congressual sobre o veto do Presidente da República a projetos de lei: “O veto será apreciado em sessão conjunta, dentro de trinta dias a contar de seu recebimento, só podendo ser rejeitado pelo voto da maioria absoluta dos Deputados e Senadores, em escrutínio secreto” (art. 66, § 4º). Fora dessas hipóteses excepcionais (registre-se que o desejável, para fortalecimento da democracia transparente que a Constituição impõe, seria a abolição, por meio de emenda à Constituição, de tais manifestações de voto secreto no Parlamento; não se aponte, aí, o óbice do voto secreto como cláusula pétrea, pois a cláusula pétrea do inciso II do § 4º do art. 60 é o voto secreto do eleitor-cidadão), o voto no âmbito do Poder Legislativo deve ser aberto, a fim de que o cidadão-eleitor possa tomar conhecimento da postura adotada pelo seu representante e avalie a correção do seu procedimento. O parlamentar não há de temer qualquer represália ao seu voto aberto, porque “Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos” (art. 53, caput). E o mesmo raciocínio se aplica às sessões no âmbito do Poder Legislativo, que a Constituição prevê que devem ser realizadas em caráter secreto apenas na ocasião em que atribui competência privativa do Senado Federal para “aprovar, previamente, por voto secreto, após argüição em sessão secreta, a escolha dos chefes de missão diplomática de caráter permanente” (art. 52, IV). Fora dessa hipótese excepcional, todas as sessões do Poder Legislativo devem ser abertas, a fim de que o cidadão-eleitor possa tomar conhecimento dos atos processuais praticados, das argumentações desenvolvidas e dos debates travados e, ao final, possa avaliar com qualidade o procedimento do seu representante e o próprio acerto-desacerto do resultado final do julgamento. É a mesma interpretação que decorre da garantia constitucional de que “a lei só pode restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem” (art. 5º, LXI), sendo certo que os atos praticados no contexto do processo político-parlamentar são também atos processuais. De tudo o que foi dito, fica a perplexidade diante da anunciada realização de sessão secreta para deliberação sobre a cassação do mandato do Senador Renan Calheiros. Se o voto de cada Senador, nesse caso, é secreto, isso decorre de expressa previsão constitucional, embora já seja hora de refletir sobre o equívoco de tal regramento e operacionalizar a sua mudança para o voto aberto; todavia, a sessão em que será levada a julgamento a acusação de prática de ato incompatível com o decoro parlamentar deve ser aberta, sob pena de violação grave à Constituição Federal e à soberania popular e sob pena também de frustrar a expectativa da sociedade de poder acompanhar e fiscalizar o seu desenrolar e, em decorrência, posicionar-se crítica e conscientemente quanto ao seu resultado final.
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