Aracaju acordou sombria na manhã de 29 de abril de 1958, com nuvens cinzentas prenunciando chuva. Mas tempestade maior estava por vir. Estarrecida, a sociedade sergipana tomava conhecimento pela rádio, do assassinato do médico Carlos Firpo. Na madrugada, sua casa foi invadida por uma pessoa que, no quarto onde dormia, desferiu-lhe certeiras e vigorosas facadas no abdome que o levaram, minutos depois, à morte. Naquela noite, Firpo estava sozinho. Milena, sua esposa, no momento do crime, encontrava-se no quarto ao lado, onde dormia ao lado das filhas Julieta e Maria das Graças. Milena, em depoimento à Polícia, disse que em razão de um resfriado prolongado de Maria das Graças, que dificultava o seu sono, vinha dormindo nos últimos dias, no quarto dela. A família residia numa bela casa de andar localizada à rua Campos, que ainda hoje preserva o antigo estilo arquitetônico. Carlos, surpreendido no meio da noite, gritou pedindo socorro. O médico Aloísio Andrade, seu vizinho, ouviu os gritos e abrindo a janela de casa, ainda chegou a ver um vulto, correndo pela rua em direção ao rio. Rápido, foi à casa do amigo e deu-lhe o primeiro atendimento. “ – Veja o que fizeram comigo, Aloísio…! “ “ – Que aconteceu, Carlos, quem fez isso?” perguntou-lhe, aflito. “ – Não vi, estava escuro, não deu para enxergar. Acordei ferido!”, respondeu, esvaindo-se em sangue, com o abdome aberto, exteriorizando as alças intestinais, duas delas seccionadas. “ – Leve-me para o hospital”, suplicou aos gritos, enquanto Aloísio presta-lhe os primeiros socorros. Nesse momento, chegam outros amigos entre eles Canuto Garcia Moreno, cirurgião, que ajuda Aloísio nos cuidados ao ferido, colocando-lhe uma toalha umedecida sobre o abdome. Lourival Bomfim tenta acalmar Milena e as filhas, naquele momento completamente desnorteadas. A comoção é geral. Os médicos, por fim, atendem ao apelo de Firpo. Seguem às pressas para o Hospital de Cirurgia, mas ele não resiste aos graves ferimentos e morre no Centro Cirúrgico. Carlos Firpo era Diretor do Hospital Santa Isabel desde 1949, onde operou uma completa transformação naquela instituição, obtendo o credenciamento do IAPI, o que aumentou consideravelmente a subvenção do nosocômio. Além disso, construiu a maternidade, implantou os serviços de RX e laboratório, lavanderia mecânica, edificou a clausura das Irmãs, o centro cirúrgico, estendendo todos os benefícios aos mais carentes, aos pobres indigentes. Carlos era também um militante político, udenista atuante e influente, ex-Prefeito de Aracaju, que lutava com afinco para ter o seu nome acolhido como vice-governador na chapa de Heribaldo Vieira. Entretanto, ambos não eram os preferidos da cúpula udenista, liderada por Leandro Maciel, governador de então. Mas Carlos lutava pela indicação. Era querido pela população, médico humanista de muito labor e coragem. No tempo da 2ª Grande Guerra, casara-se com Milena Napolioni Mandarino, moça muito bonita, de pele bem alva e modos requintados, filha de Nicola Mandarino. Casados, Carlos e Milena vão residir na casa da Rua Campos e é nessa casa que acontece o assassinato de Firpo, episódio que fica conhecido como o “Crime da Rua Campos”, com forte repercussão em Sergipe e em todo o país. Na época, Nicola residia na casa, com a filha, o genro e as netas. Nela ainda trabalhava e residia uma empregada doméstica, que depois seria testemunha importante no desenrolar do processo. Em janeiro de 1955, quebrando uma longa tradição oligárquica, é empossado no Governo de Sergipe o engenheiro Leandro Maciel, da UDN, com forte apoio popular. Na véspera da sua posse, ocorrida no dia 31 de janeiro, trazendo autoridades e jornalistas de várias partes do país, pousava no aeroporto de Aracaju um avião da FAB pilotado pelo major Afonso Ferreira Lima, o Afonsinho, que na oportunidade reveria os amigos, entre eles, a família Mandarino. Carlos Firpo, nessa época, já era um médico muito estimado, havia sido Prefeito de Aracaju, dirigia o Hospital Santa Isabel e era prócer político destacado e amigo do vice-governador empossado, o também médico José Machado de Souza. Durante o governo de Leandro, Firpo ampliou a sua área de influência e passou a lutar bravamente pela sua indicação como vice-governador na chapa da situação nas eleições que aconteceriam em 1958. O que se segue após o crime da rua Campos, é uma sucessão de equívocos e excessos policiais, com relatos de violência e mais assassinatos, com a população mobilizada e informada pela imprensa de todos os passos da investigação. Até o Lions Clube entra na investigação. A “sinistra trama passional”, de acordo com a versão policial, invade as páginas dos jornais de todo o país e monopoliza as atenções por muito tempo. Dias depois do assassinato, um chofer de táxi de Aracaju procura a polícia e relata que teria conduzido a Paulo Afonso, no dia seguinte ao crime, dois indivíduos que lhe pagaram sem reclamar a importância de Cr$ 5.000,00. Segundo palavras do chofer, eles teriam presenciado o cortejo fúnebre de Carlos Firpo em direção ao Cemitério Santa Isabel, ficando impressionados com a multidão que o acompanhava e, comentando entre si, mostravam-se assustados com a repercussão do crime. Quando o táxi cruzou a divisa Sergipe-Bahia, um deles teria suspirado, aliviado: ”Dessa estamos livres”. A partir da pista, a polícia chegou aos suspeitos e deu ordem de prisão aos dois: José Euclides Timóteo de Lima e José Pereira dos Santos, mais conhecido como Pereirinha. O conhecimento entre os dois vinha do tempo em que trabalharam juntos na CHESF. Timóteo havia sido demitido por se envolver em briga com colegas dentro da empresa e Pereirinha ainda trabalhava na hidroelétrica e para se ausentar do trabalho para a missão criminosa, teria alegado a necessidade de cuidar de um parente que se encontrava doente. Eles teriam chegado a Aracaju pelo menos uma semana antes do assassinato e prepararam com detalhes todos os passos do crime. Pressionado, Pereirinha confessou ter sido o autor do crime. De Timóteo, à custa de torturas que o levaram à morte, obtiveram uma confissão. Mesmo negando inicialmente qualquer envolvimento com o crime, quando acareado com Pereirinha, este confirmou a ação. Timóteo passou a ser brutalmente torturado e terminou citando dois nomes: Enock Pessoa de Carvalho, com quem teve um primeiro contato na Bahia e depois o Coronel Afonso Correia de Lima, o Afonsinho, que se encontrava na cidade dias antes do assassinato. Não resistindo à tortura, Timóteo veio a falecer na madrugada da terça-feira e o laudo médico-legista, assinado pelo Dr.Antonio Coutinho, dava como causa-mortis uma miocardite crônica (!). Ao longo do tempo, ficou clara a intenção de conduzir as investigações para o que parecia mais óbvio: um crime passional. O que se seguiu posteriormente foram confissões forjadas pelos rigores da pressão e da tortura intelectual impostas a pessoas que trabalhavam na casa do casal e que culminaram com a prisão de Milena e Afonsinho, sob a acusação de terem encomendado o crime, pois estariam supostamente envolvidos em relações extraconjugais. Paralelamente, outras versões corriam de boca-em-boca: poderia o crime ter motivações políticas? Quem estaria interessado na morte de Firpo, que insistia em ser candidato a vice-governador? Disputas políticas teria sido a causa do crime? O Jornal Última Hora, do Rio de Janeiro, através de uma série de longos artigos, passou a defender essa tese, chegando a insinuar possíveis beneficiários no assassinato. O Dr.Machado chegou a ser injustamente envolvido nesse episódio. A SOMESE, à época presidida por Canuto Garcia Moreno e a Associação Comercial de Sergipe, por outro médico, Gileno da Silveira Lima, promoveram um grandioso ato público de desagravo ao Dr.Machado, com um palanque armado em frente a sua casa, na Rua Pacatuba. Durante horas, uma multidão de admiradores, populares e políticos, incluindo o próprio Governador, prestou solidariedade ao grande pediatra, com discursos inflamados. A sociedade sergipana, entretanto, estava dividida nas suas opiniões. Exigia a elucidação do crime, teria sido um crime político ou um crime passional? Um outro aspecto que não chegou a ser aprofundado pelas investigações dizia respeito a transações comerciais entre Nicola Mandarino e outras pessoas, inclusive o genro. Especulava-se que por causa das perseguições sofridas em função de sua origem italiana e do confisco determinado pelo Governo brasileiro no tempo da Guerra, Nicola teria transferido parte dos seus bens para terceiros. Este fato foi comentado pelo jornalista Luiz Eduardo Costa, um estudioso do assunto, em artigo publicado na imprensa, onde diz que o inquérito “não levou em conta o desaparecimento de documentos que estariam guardados cuidadosamente pelo Dr. Firpo”. Dos personagens envolvidos nesse relato, Nicola Mandarino morreu na década de 60. Pereirinha, condenado a vinte e cinco anos de cadeia, cumpriu a pena e morreu na década de 90. Afonsinho morreu na década de 70 e Milena continua viva e reside O fato é que, passados 50 anos, o assassinato de Carlos Firpo ainda é um mistério a desafiar a imaginação das pessoas. Fontes: 1. Wynne, J.Pires.Livro:História de Sergipe, vol.2.Rio de Janeiro:Editora Pongetti, 1973. 2. Figueiredo, Ariosvaldo.Livro:História Política de Sergipe.Aracaju. 3. Impressos: coleção do Jornal Última Hora, diversas edições.1958. 4. Impressos: artigo publicado na imprensa pelo jornalista Luiz Eduardo Costa, em 2006. 5. Impressos: diversas edições dos jornais O Nordeste, Folha Popular, Correio de Aracaju, A Cruzada e o Diário de Sergipe, 1958. 6. Documentos: acervo da Biblioteca particular do médico Petrônio Gomes. 7. Depoimento pessoal do Dr. Antonio Garcia Filho, em 1994.
“…não, não te lamentes não, que a pura verdade, virá depor! Deus, não esquece o coração, que sempre foi fiel, no amor” ( “Injustiçada”, de Antonio Garcia Filho) Carlos Firpo discursa em solenidade no Hospital Santa Isabel, em 1958.
Nicola era um imigrante italiano que em Sergipe prosperou e tornou-se homem de muitas posses. Morava numa bela casa situada à Praça Olímpio Campos, onde hoje é o Palácio Episcopal, no início da Rua Santa Luzia. A família adquiriu bens, entre eles uma propriedade no povoado Colégio, em Itaporanga, que possuía uma bela casa assobradada no alto da colina, com vista deslumbrante do leito do Rio Vaza-Barris. Milena, de hábitos recatados e de fina educação, estudava no Colégio do Salvador, sua família possuía muitos amigos e tinha um convívio social intenso. Entre os amigos da família, Afonso Ferreira Lima, mais conhecido por Afonsinho, vindo da Bahia para estudar em Aracaju e o médico Carlos Firpo, jovem inteligente e garboso. Milena e Carlos começam a namorar e durante o noivado e casamento, vem a Segunda Guerra Mundial. Afonsinho, como era mais conhecido, segue a carreira militar, tornando-se exímio piloto de avião, com a missão de patrulhar o litoral brasileiro. Já Carlos Firpo destaca-se na medicina, muito estimado pelos pacientes e com forte atuação política. A revolta que toma conta da população contra os imigrantes dos países da tríplice aliança, Alemanha, Itália e Japão, não poupa Nicola Mandarino, acusado injustamente de colaborar com o Eixo como espião do regime de Hitler e Mussolini. Da sua varanda do sobrado no povoado Colégio, ele supostamente transmitia informações para os submarinos alemães sobre a localização dos navios e cargueiros brasileiros que navegavam pelo nosso litoral. A população descontrolada clama por vingança, depois do torpedeamento e afundamento de navios no litoral de Sergipe. Na verdade, nunca ficou provado que Nicola Mandarino fosse espião. Um velho rádio receptor foi confundido com um transmissor e jogado pela janela. O enxoval de casamento de Milena também recebe o mesmo tratamento, sendo destruído pela população ensandecida. Definitivamente, Nicola não era um espião. Nicola Mandarino
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