O Crime de Sylvestre II

A viagem à Itália foi longa e cansativa .

Naquele tempo, 1859, não havia trens, caminho de ferro, que levassem Bonnard de Paris ao extremo sul da bota italiana, hoje cenário extremamente visitado por turistas de todo mundo, a bela costa amalfitana, que não conheço, mas pretendo se os ossos mo permitirem e se a COVID for vencida, nessa luta peleada por governadores enganadores, encastoados em ciências dissolventes e dissolutas, e só por lutas, maldizentes de um Presidente, “terraplanista”, esta figura borrada e destoada, e pouco planisférica, por biruta.

Birutices à parte, Bonnard viajou bastante por estradas poeirentas no lombo de burros ou por eles carregado em carroças de pouco desvio aos muitos tombos na estrada.

Antes de vadear o mar Tirreno em demanda do Jônio, eis que em Nápoles, nosso viajante encontra-se com um Casal de alta nobreza eslava, assim era de supor pelos seus nomes apresentados: Príncipe e Princesa Trépof.

O casal era contumaz viajante ao longo do globo, à procura de caixas de fósforo para a sua coleção, todos com a sua mania de valorizar aquilo de seu agrado.

Se Bonnard varava o mundo em busca de um manuscrito perdido do abade Doctrovée, os Príncipes Trépof caçavam caixas de fósforo para a sua coleção de raridades, e até ganhar dinheiro com isso, em permuta com colecionadores de sua confraria.

Giuseppe Garibaldi – Herói de dois mundos – Guerreiro de Unificação Italiana

Embora Bonnard não fosse afeito a diálogos, travou-se uma conversa fluente entre o velho amante da Legende Dorée em tantas histórias dos monges de Saint-Germain-des-Prés a contar, e a Princesa Trépof que lhe narrava até suas histórias recentes, quando naquela mesma viagem fora custodiada pela polícia, enquanto terrorista e revolucionária, por possuír nas suas bagagens íntimas algumas caixas de fósforo contendo as efígies de

Pasquale Macini, ideólogo do Rissorgimento Italiano

Giuseppe Garibaldi e Pasquale Mancini, supremo crime então afinal o ano era 1859, e estes dois líderes do Risorgimento Italiano eram considerados foras da lei no Piemonte, nos Estados Papalinos e no Reino das Duas Sicílias, na Itália separados.

Uma acusação que só foi resolvida após intervenção pessoal do próprio Rei das Duas Sicílias, isso depois de serem confiscadas as perigosas caixas de fósforos.

Havia, todavia, algo intrigante na história dos viajantes.

Para Bonnard o casal Trépof não lhe parecia de todo fútil, afinal não há frivolidade na mania de cada um; um colecionador é alguém que merece compreensão e respeito, seja juntando selos, quadros, moedas, livros velhos, o que for!

Se o Príncipe era silencioso e gentil, a princesa, conversadora demais, sempre repetia:  – Eu conheço o Senhor! Teria sido em Cantão? Em Copenhague? Em Budapeste ou Praga?  Eu conheço o Senhor…

A Princesa viajara por todo quadrante do globo em busca de caixinhas de fósforo… e  de algum lugar lhe vinha a lembrança perdida do perfil dorsal do velho pesquisador.

O rosto ela não lembrava, mas aquelas costas,… Era inconfundível em sua memória!

Como o seu marido não a socorria no reconhecimento, continuaram a viagem em demanda de Agrigento, onde Bonnard iria procurar a residência do Signore Micael-Angelo Polizzi em busca do famoso manuscrito da Légende Dorée.

Como os interesses eram distintos, Bonnard se separou do casal, antes sabendo que a Princesa era mãe de um garoto, rapazinho de nove anos, e lhes deixando o seu endereço, às margens do cais Malaquias, no Sena, localização que a iluminou.

– Ah! Eu sabia que o conhecia! – Confessou-lhe – O senhor não sabe, mas o senhor é um homem muito bom, Senhor Bonnard!

Como nada foi dito nem perguntado, o casal seguiu seu caminho e Bonnard foi atrás do que lhe interessava; o manuscrito da Légende Dorée.

Quando Silvestre Bonnard encontrou o Signore Polizzi este segurava uma caçarola onde cozinhava salsichas, no meio de quadros, porcelanas, manuscritos toscos, figuras esboçadas e mal traçadas, coisas bem comuns aos espíritos pouco arrumados, quiçás distraídos, ou espertas manias dos que comercializam produções artesãs e quinquilharias.

Quanto à Légende Dorée, enquanto Polizzi arrancava os cabelos em trauma fingido, pedia-lhe mil perdões por não o fornecer, afinal o dera pouco antes a um seu filho único, “carne de sua carne, osso dos seus ossos, a quem nada podia negar”, que o estava comercializando numa loja de antiguidades em Paris, justamente ne Rua Laffitte, na proximidade da residência de Bonnard.

Desnecessário dizer que o velho pesquisador se sentiu esbulhado, mesmo porque o Signore Polizzi não dava ponto sem nó, e fazia de tudo para lhe vender algumas gravuras “do tempo de Empedocles”, cópias falsificadas por ele próprio Polizzi, que se afirmava um bom pintor e recuperador de acervos longamente soterrados.

Conversas fiadas à parte, Bonnard apressou sua volta a Paris, e logo estaria de volta à sua biblioteca e aos cuidados de sua governanta Hélène, querendo ir logo à Rua Laffitte à procura da Légende Dorée, que estaria agora aos cuidados do filho do Signore Polizzi.

Se o Signore Polizzi-Pai se chamava Micael-Angelo, o filho era Rafaël, ambos igualmente enrolados e parecidos.

Para Rafaël, Bonnard chegara atrasado e o manuscrito da Légende Dorée seria leiloado num dos dias que se seguiria.

Bonnard foi ao leilão.

Tentou arrematar o manuscrito mas tudo restou em vão.

Alguém levantou demais o preço, e o manuscrito escapou-lhe, sem que localizasse o comprador, nem que fosse para uma consulta.

Foi uma decepção terrível.

Voltou para casa acabrunhado, antes parecendo avistar a Princesa Trépof numa carruagem ao lado.

Tempos depois, um menino foi a sua porta lhe deixando uma encomenda.

Ao abri-la, teve uma enorme surpresa!

Em meio a violetas perfumosas, jazia um pequeno pacote contendo o manuscrito tão procurado da Légende Dorée de autoria do Clérigo Alexandre, contendo a Purificação da Virgem e a Elevação de Proserpina, ao lado de um bilhete da Princesa Trépof.

– Quem trouxe o pacote? – Perguntou Bonnard à governanta que recebera a encomenda.

– Foi um menino desconhecido que saiu apressado numa carruagem. Mas, eu vi quem estava com ele! Ela não me engana, mesmo assim toda arrumada e bem vestida! Era a sirigaita da Coccoz, que sumiu do prédio sem se despedir.

Estava o mistério desvendado: a Princesa Trépof que dizia conhece-lo era, nada mais, nada menos, que a Senhora Coccoz, de canto doce, que sumira das suas lembranças, mas não passara da vigilância de Hélène.

Se Sylvestre Bonnard esquecera de Madame Coccoz, ele jamais esqueceria de Clementina.

Fora o único e eterno amor do velho pesquisador, membro dos maiores institutos e academias, possuidor de impensáveis títulos e novelos em muitas becas e capelos.

Cabelos fartos e barba ainda a nascer, Sylvestre ainda um liceano conhecera Clementina, então dois meninos, duas crianças que a ventura aproximara, e que a desventura, fortuita e arrebatadamente, os afastara, definitivamente.

Sylvestre era um rapazola estudioso, filho de um diligente funcionário cujos serviços eram requisitados, sobretudo em momentos de guerra, como aquele em que Napoleão Bonaparte desafiava nos mares a todo poderosa esquadra inglesa.

Napoleão Bonaparte em seus dias de glória

O imperador lhe encomendara um relatório minucioso da marinha bretã, estudo que só foi concluído seis anos após a batalha de Trafalgar, uma derrota que o Almirante Villeneuve sofreu de Nelson, o heroico Almirante inglês.

Conta-se que o Imperador, ao manusear o estudo de Bonnard-Pai, só recebido seis meses após a derrota de Trafalgar, por atrasos de impressão e grafia, talvez mesmo por boicote político, ficou sobremodo enraivecido, jogando-o na lareira e pisando suas brasas em gritos, exasperado: – “Frases, só frases! Eu já disse que não gosto de ideólogos”.

Desnecessário dizer que tal destempero chegou ao conhecimento do pai de Bonnard, que, embora sentido, continuou a ser um partidário, fiel, mas moderado, de Napoleão Bonaparte.

Um sofrimento que não o impediu de, tempos depois, realizar um trabalho de pesquisa encomendado pelo Imperador, quando este retornara vitorioso da Ilha de Elba, para os seus últimos “cem dias”, os derradeiros dias glórias da França imperial

O ano era 1814 e o imperador houvera requerido a Bonnard, enquanto especialista naval, um novo estudo sobre a marinha de guerra inimiga, que não lhe foi de muita utilidade, porque logo chegou 1815, e com ele a derradeira refrega imperial; Waterloo, batalha crepuscular do grande sonho napoleônico. E da própria França, que restou menor daí para frente, sem que o seu Presidente atual, Emmanuel Macron, ainda o perceba, em seus delírios imperiais.

Se Waterloo levou Napoleão ao seu desterro final na ilha de Santa Helena, perdida no meio do Atlântico, a batalha fizera muitos heróis pouco reverenciados, como o Tio Victor, o maior e destemido super-homem do jovem Sylvestre Bonnard, afinal aquele homem trazia no corpo três cicatrizes a testemunhar uma lenda viva, qual seja a de resistir a três golpes distintos, de sabre, chumbo e baioneta, vindos de nacionalidades diferentes, afinal o mundo se juntara, só para vencer “l’ogre corse”, o grande general corso e francês.

À parte tudo isso, vivia-se tempos de muita luta política, tempos de perseguição, muita denúncia, por retaliação e covardia, heróis de guerra sendo perseguidos, justiçados e fuzilados como o Ney, Marechal, para as lágrimas contidas do Senhor Bonnard-Pai, que se recolhia em pouca manifestação, afinal não era do seu feitio, nem a cobardia que envilece, nem a tola valentia de pouco valor merecido.

Merecidamente, a modéstia e a sábia moderação permitiram à família Bonnard navegar os mares revoltos daquele idos tormentosos em tantos partidários, ora tricolores jacobinos, ora imperiais bonapartistas, em tantos monarquistas, Bourbons e Orleanistas, radicais de todas as cores, com ou sem coroa, com barrete ou sem cocar, tudo para mal brigar e pouco unir, quando os espíritos são miúdos, e não há bom líder a reuni-los.

Como a vida prossegue, a despeito das tolices humanas, eis que na vizinhança dos Bonnard veio residir um Senhor, chamado Lessay, geógrafo de profissão, mais geômetra que Dalembert, mais filósofo que Jean-Jacques, e mais realista que Louis XVIII, cujo amor pelos Bourbons reinantes não era nada comparado à raiva que nutria contra o Imperador exilado.

Em verdade, o Senhor Lessay residira na vizinhança de Bonnard em dois tempos.

No primeiro, Napoleão Imperava sem traumas e Lessay o engolira calado

No segundo tempo, Lessay, que vivera distante por motivo de trabalho, voltara viúvo trazendo uma garota, Clementina, filha de seu casamento com uma moça, vinte e mais anos mais jovem, que tivera a infelicidade de falecer durante o parto.

Clementina virou os dengos e os carinhos da família Bonnard.

Passados alguns anos, a mãe de Sylvestre também falecera para seu grande sofrimento.

Com o passar do tempo, Clementina se fizera jovem e florida, despertando os olhares ternos de Sylvester, então um estudioso ginasiano, querido de seus mestres, por aplicado e meticuloso, e inspirado na garbosidade falante e tonitruante de seu tio, o Capitão Victor, herói triplamente ferido em Waterloo, vencido, mas, jamais rendido.

Bonnard-Pai e Lessay, dois anciãos viúvos e vizinhos, gostavam de dividir um café após o jantar, oportunidade em que Sylvestre e Clementina trocavam olhares inocentes, e assim prosseguiriam se um dia não acontecesse um encontro terrível entre o Tio Victor e o Senhor Lessay, o pai irascível de Clementina

O assunto vale a pena contar, afinal em todo tempo, católicos e protestantes, flamenguistas e vascaínos, bolsonaristas e lulistas, fernadohenriquistas e baboseiristas e tantos outros abobalhados, resolvem brigar e se estapear; por nada!

Aconteceu o que Sylvestre Bonnard temera: Bonnard-Pai, o Senhor Lessay e o Tio Victor, Capitão, em volta de algumas xícaras de café partilharam uma garrafa quente de Conhaque.

O Capitão Tio Victor, como já dito anteriormente, era um bonapartista incendiário.

Não chegava às auras de um jacobino “bebedor de sangue”, como se dizia então dos radicais, mas, por suas ideias e arroubos, chegara a trocar desafios num duelo quando feriu gravemente um adolescente, sofrendo apertos legais, percalço que bem lhe retorcia a fama de provocador e brigão.

Inimigo dos Bourbons, então restaurados, mais enraivecido ficava ao receber os seus proventos de Capitão e herói de guerra, auferindo um soldo reduzido, só a título de perseguição.

Estavam Bonnard, Lessay e Tio Victor rateando o licoroso conhaque, observados por Sylvestre interessado em Clementina, que bordava distraída, quando a conversa evoluiu para a notícia iminente de passagem de um cometa, assunto de raro deslumbre, motivo para encantamento, previsões e sortilégios.

Sylvestre viu então a oportunidade de decantar belezas, querendo despertar o olhar e a atenção de Clementina.

Foi aí que Tio Victor engatou a discussão: Meu sobrinho – disse ele – teu cometa não se compara com o brilho dos cabelos da Imperatriz Josefina quando ela chegou a Strasbourg para distribuir cruzes ao exército!

Esta miúda Josefina gostava de aparecer! – disse Lessay – Eu não a censuro. Ela era uma “Tascher”, de família nobre, ela deu grande honra a esse  “Buonaparte”, desposando-o. Uma “Tascher” não representa muito, mas um “Buonaparte” não representa absolutamente nada!

Que entende você disso, senhor marquês? – Questionou o Capitão Tio Victor.

Eu não sou marquês! – Replicou o Senhor Lessay subindo nas tamancas – Esse seu “Buonaparte” devia ter se casado, não com uma “Tascher”, mas com uma destas canibais que o Capitão Cook descreve em suas viagens, nuas, tatuadas, com uma anel nas ventas e devorando membros humanos apodrecidos.

Sylvestre ficou apavorado, mas nada pode impedir, quando viu seu Tio Victor subir nas ancas a gritar:

Napoleão, seu cabeça oca!, teve uma outra esposa além de Josefina e Maria-Luísa! Essa companheira, você não a conheceu, mas eu a vi de perto. Ela portava um manto azul constelado de estrelas, ela estava coroada de louros; a cruz de honra brilha no seu peito: ela se chama A Glória!

O Senhor Lessay pos sua taça na lareira e replicou:

Seu “Buonaparte” era um malandro! – Ou um sacana nos dias de hoje.

O pai de Bonnard, que sempre fora um Bonapartista fiel, mas modesto e contido, enojado com um comentário tão depreciador à figura do Imperador destronado, justo naqueles dias de luto, quando era recente a notícia do seu falecimento na Ilha de Santa Helena, que ergueu-se e protestou:

 – O que tenha sido esse homem falecido na ilha de Santa Helena, eu trabalhei para ele dez anos no seu governo e meu cunhado foi ferido três vezes sob suas águias,. Eu lhe suplico, senhor e amigo, não se esqueça daqui para frente!

Napoleão Bonaparte em seu leito de morte.

A admoestação enfurecera o Senhor Lessay, repetindo tantas ofensas a todos dirigidas, que o Capitão Tio Victor pulou em sua garganta, só não estrangulando o velho monarquista, porque todos intervieram conseguindo safa-lo, que logo foi se embora, levando Clementina, distanciando-a de Sylvestre para sempre.

O afastamento fora realmente definitivo, afinal morando longe, Clementina depois casou-se com um grande financista, alguém que lhe deveria dar uma vida confortável, permitida aos providos de numerários e riqueza.

Como a vida continua, os anos foram seguidos por décadas, muitos livros sendo lidos por Sylvestre que só esqueceria Clementina por sua ânsia de perquirir a história do Santos Monges da Abadia de Saint-Germain-des-Prés.

Assim, eis que já sessentão ou setentão, Sylvestre foi convocado a fazer o inventário de uma grande biblioteca pertencente a um homem de muitas posses que morrera na miséria, por investimentos ruinosos conduzidos pelo marido de Clementina, que em mesma desdita enveredou a família de sua amada em sérias dívidas e em revezes insolventes.

Sylvestre que nada disso soubera, ao inventariar a biblioteca do devedor insolvente, trava então conhecimento com uma garota chamada Jeanne, que arrima de pai e mãe, ali estava sem futuro, a depender de mendicância e caridade, por não possuir qualquer dote, a lhe suprir um melhor porvir,

Jeanne, essa criança órfã, era filha de Clementina, o seu único amor e inesquecível paixão.

Assim, ei-lo agora setentão, com flores à mão, chorando ao lado do túmulo de Clementina, fazendo planos para Jeanne, quem sabe, para o restante de seus dias.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
Comentários

Nós usamos cookies para melhorar a sua experiência em nosso portal. Ao clicar em concordar, você estará de acordo com o uso conforme descrito em nossa Política de Privacidade. Concordar Leia mais