Difícil começar uma coluna com um filme dessa natureza, a política. Mas estamos necessariamente dentro de uma conjuntura que não nos exime de posicionamentos. Falar de cinema, apesar de tudo, também sempre foi falar de política – como falar de arte em geral. O mais interessante não seria notar até onde vai a arte e até onde vai a política, nas obras. Os limites entre os atos e os afetos. Pelo contrário. Seria encarar que ali, naquela expressão de sentimentos, sentidos, paixões, mesmo que não haja intenção, está expresso esse ato político que reverbera.
Um filme que já tem como tema a “Lava-Jato”, então… É um ato político de fato.
Escolher falar, tratar o que foi ou é a operação que uniu a polícia federal e setores do judiciário, é no mínimo audacioso – pra não, ainda, falar como um ato corajoso. Há um tempo o diretor e produtor José Padilha, da série que teve estreia dia 23 deste mês, tem tentado trabalhar o problema da corrupção no Brasil. Já estava ali nos dois Tropas de Elite. Nos quais, um herói surgia na tela com a desculpa da crítica feita ao estilo Coppola em O Poderoso Chefão (onde o protagonista é um facínora adorado pelas plateias por sua atitude violenta e mafiosa). Só que, é preciso dizer, o herói de Padilha era um policial trucado. Um agente do estado, portanto. O tiro saiu pela culatra.
Padilha é sim pretensioso. E quer desagradar, pra não dizer desgastar, setores da esquerda, especificamente. Ele, há algum tempo, manifesta um anti-lulismo, anti-petismo em suas declarações à imprensa. Em uma entrevista às organizações Globo, ele solta:
“Num momento em que a economia do país está em queda, em que o PIB cai, o lucro é reduzido. Por isso, é bastante surreal ver o apoio da classe e de muitos cineastas ao governo do PT, que, por má administração e gestão econômica, colocou o país na situação em que está. Acabou o dinheiro. Não sei como não entendem que isso é ruim para o cinema.”
Seria algo neutro, se não tivesse aquele sentimento geral que domina parte da classe média brasileira, que junta o discurso da crise econômica com a gestão petista no governo, para eles, desastroso de Dilma. Esse pano de fundo faz parte de “O Mecanismo”. O site Adoro Cinema já alertou: há frases de Romero Jucá no personagem que encarna Lula, na série, evidenciando esse peso de uma crítica apaixonada. Apaixonada, como vemos, pelo senso de justiça da Lava Jato – ou, do senso de justiça que paira pelas grandes e pequenas mídias atualmente.
Este senso de justiça, moralista ao fundo – pois a série usa da estrutura melodramática de novelas latino-americanas – , é um senso desesperado. Há indícios de uma subjetiva indireta no personagem de Selton Melo (dizem por aí que Wagner Moura não quis o papel por discordar radicalmente de Padilha, e de sua visão superficial da política atual do país). E este protagonista é um desesperado, organizando essa nossa visão aqui. Não há, dentro de um caos tão grande da ebulição midiática que se tem acomodado sobre as “instituições nacionais”, apontamento sóbrio, muito menos aprofundado, sob este véu do desespero.
A série não chega a dizer “porque” veio, ainda. Mas, faz aquilo que o juiz vaidoso quer – publicidade. Este fica sendo, por enquanto, o ato político. É essa a esperteza (expertise, melhor dizendo) de José Padilha como cineasta. Usar um tema político vigente para bombar nas audiências. E ele tem seu êxito nisso.
Porém, ao falar de política, ao fazer parte do ato político atual, neste caso aqui o espetáculo midiático que teve consequências como o afastamento da primeira presidente mulher da história do país, Padilha se coloca como um ator imprudente, por vezes até ingênuo. Ao escolher o viés moral, ou moralista, também denota qual sua escolha política. Ele não chega a discutir, por exemplo, as intenções partidárias de setores midiáticos… Talvez porque ele faça parte desse setor, tal como outros cineastas. Ele não consegue, como seu personagem principal, entender qual é o mecanismo da corrupção. Isso faz parte, por enquanto, da série que, a depender, continua ou não na Netflix.
É preciso dizer que, lamentavelmente, o resultado audiovisual de O Mecanismo foi altamente insatisfatório. Cenas indesejáveis, apelos pela audiência sensacionalista, uma dilatação do tempo narrativo que entedia – não estamos diante de uma mise en scéne que nos atrai, com exceção da performance de Selton Melo (aliás, por que ele aceitou esse papel?). A série, comparada com outras menos pretensiosas da própria Netflix, é muito precária em roteiro, montagem, dramaturgia. Há o exemplo de “Merlí”, uma “malhação” catalã que politiza as relações em uma escola de ensino médio. E, com certa tristeza digo isso, há a série de Padilha, que entoa a velha salvação dos males brasileiros através da polícia. Fórmula que, pretensiosamente, coloca a produção na casta de “House Of Thrones”, mas à revelia da política de fato – em outros termos, Padilha despolitiza o político, mérito extremamente desenvolvido de “anarquistas” que se envolvem com grandes empresas.
Falta a Padilha assistir, decupando com atenção de criança ambiciosa, aos filmes de Oliver Stone. Que, aliás, tem seus limites. Mas, ao falar de política “querendo destrinchar seu mecanismo”, sai da voz over e entra na compreensão. Se quer realmente entender, melhor sair da pretensão da tese que precisa ser demonstrada – neste caso, uma tese que se associa, como andam dizendo, aos mais reacionários. Melhor se deslumbrar com a complexidade, e não fugir dela.