O homem é essencialmente um enfermo diria Thomas Mann em A Montanha Mágica, epígrafe escolhida por André Viana para o seu romance O doente.(Cosac Nayf) Não sei porque cargas d´água este livro me chegou exatamente quando eu estava internado, com antibiótico na veia há 22 dias. Devorei em dois dias, entre atônito com a mensagem subliminar e a descoberta que encontrei no decorrer da leitura.
Mais que o roteiro, André Viana nos convida ao despudoramento. Narrador obsessivo, ele se supera pela riqueza de detalhes e consegue como num cinema cope reunir numa narrativa escaldante a história de um filho, numa casa onde a mãe é a figura central, embora silenciosa. A mãe é sempre figura emblemática. O livro desconjunta o leitor. O avassala. O espreme. É a figura ensandecedora da mãe de passos curtos, que ao que parece, é uma figura que vai se tornando incômoda para o leitor, misto de compaixão do próprio filho, melhor seria ela ter morrido junto com o pai(?) Parece que toda mãe, carrega em si a miséria dos filhos e da família, a caridade odiosa de ter que amar.
O escorrimento do texto, o irmão de short curto lembrando Tadzio de Dirk Bogarde, o que lhe dá tesão impõe a André Viana grandezas similares a Jean Genet, Nestor Perlongher, Caio Fernando Abreu e, onde o diretor Schnabel em “Antes que anoiteça” com a genialidade de Javier Barden nos remete à mesma sensualidade vivida pelo personagem de o doente.
Almodóvar já havia barbarizado quando colocou Antonio Banderas em ‘A lei do Desjo” fazendo frango assado. É tão fantástica a imaginação de André Viana, que Peter Pan vira uma travesti, demorando no quarto para ser vestir e saindo com a música de de Piazolla fazendo-o melar-se de prazer. Colocar Peter Pan de travesti já vale todo o romance. O romance de André nos remete a um espetáculo de Zé Celso Martinez Correa, uma exposição de Cido Meireles ou um quadro de Josephine King.
O romance vai crescendo e a imaginação rara do autor nos coloca em xeque. Não é a Lavoura Arcaica de Raduan Nassar, mas nos deixa instigados, pensando ser Sandor Marai baixando no autor que dizia só enxergar desejos de vingança. Seria, no fundo, uma vingança de André Viana, com este romance, onde ele suplanta o trivial comum e coloca o leitor na berlinda? Mais que um bolo de aniversário na sala com o caixão do pai, uma bilheteria de cinema e as diversas aventuras sexuais, quase sempre vazias, sem amor, a narrativa rica impõe um tratado político da literatura. E literatura é isso: radiografia exata, como se numa tomografia computadorizada pudesse aparecer o cérebro do escritor. A perversão aqui é o que menos conta, há um esgruvinhamento a cada personagem descrito e mesmo o irmão, a caminho do sanatório, se perde em importância, porque o narrador tem sede de escândalo, espatifar a palavra ao máximo, desdenhar do leitor como se ele fosse um nada, um cuspe, uma bactéria. O que realmente é.
Como alguém morrendo à nossa frente, “o doente” não deixa caminho para penas. Não é o escafandro nem a borboleta, não é o mar adentro. A qualquer momento o médico vai entrar e dizer: acabou. É o narrador insano, esquizofrênico, querendo, ele mesmo, se vingar da escrita – luta inglória! Para que serve escrever? O autor André Viana tomou várias vodcas, fumou um, Jimi Hendrix na vitrola e foi pro papel, um perigo para quem teve no pai também escritor, uma angústia abrindo a porta dos infernos.
O imaginário é sempre temerário. O ideal do autor é libertar seus personagens deles mesmos. Reféns que são desde o início do romance da impiedade do autor que não consegue perdoar o pai de ter morrido no dia do seu aniversário. Muito tensa, toda narrativa é singular. André Viana escapole ao narrador frio, inconsútil, dando a cara para bater, tal um mamífero no cio. Até o sexo é ferido de culpa. Sêmen escorrendo pelas pernas do narrador. Não é a santidade que quer André Viana – ele quer o escracho, o pecado, a selva escura de Dante. André pode fazer como Raduan: cansar de literatura. O seu leitor será sempre refém de seu texto.
Quem sabe surgirá um dia o amor? Indaga o autor dentro da própria morte.