O escrivão, o cronista e os papas

     

                                                                              

Capa de Notícia do Brasil, de Gabriel Soares de Souza, que precede ao Tratado descritivo do Brasil.
As poucas informações sobre a vida sexual e a sensualidade dos indígenas brasileiros, bem assim sobre a organização religiosa da família são capítulos que têm ficado de fora da historiografia nacional. A Carta do Achamento, de Pero Vaz de Caminha, datada de 1º de maio de 1.500, mais do que uma certidão da descoberta do Brasil é um documento rico de informações, elaborado para atender ao ofício de Escrivão da frota, ou da armada, de Pedro Álvares Cabral, enviada a Dom Manoel, na seqüência da célebre viagem às Índias. Morto, ao que tudo indica pelos mouros, na Feitoria de Calicute, Caminha não voltou a Portugal para colher os aplausos pelo seu trabalho, em alguns pontos minucioso, sobre a terra que foi Ilha de Vera Cruz, Terra de Santa Cruz, antes de ser Brasil. A Carta do Achamento resume, em seu corpo, uma notícia em si relevante, essencial à compreensão do feito dos mareantes portugueses, em seus múltiplos aspectos.

Diante de homens e mulheres nus, na praia brasileira, Caminha identificava que “nenhum deles era fanado (circuncisado), mas todos assim como nós”, o que significava dizer que não tinham ligações com o judaísmo, nem com o islã, como corria no imaginário europeu daquele tempo. A igreja tinha difundido a teoria do repovoamento da terra por Noé, sua mulher, seus filhos Sem, Cam e Jafé, as mulheres dos seus filhos, acompanhados na arca por parelhas de animais. Os indígenas não eram semitas, camitas e nem descendentes de Jafé, muito embora no contato catequético eles fossem comparados os descendentes de Cam, o filho maldito de Noé, rotulados de mamelucos pelos jesuítas e outros catequistas.

Sobre as mulheres registrou Pero Vaz de Caminha: “Suas vergonhas, tão altas e tão coradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olhamos, não se envergonhavam.”  Adiante, diz o escrivão da armada: “E uma daquelas moças era toda tingida de baixo a cima, daquela tintura e certo era tão bem feita e tão redonda e sua vergonha tão graciosa que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhes tais feições, envergonhava, por não terem as suas como ela.” 

Os indígenas despertaram a curiosidade do velho mundo e foram levados de seus lugares como um pedaço do exotismo americano. Mais do que dilatar a cartografia da terra , os descobrimentos revelaram uma porção encoberta e marginalizada da humanidade, que alimentou o imaginário europeu. Ao impacto da descoberta de povos novos, correspondeu o relato, repetido, de riquezas principalmente em ouro e prata. A Igreja tratou de incorporar às suas hostes, os gentios (assim eram chamados os que estavam fora do grêmio de Israel), dirigindo documentos especiais e preparando os “soldados” da fé, para uma nova cruzada cristã. As coroas européias não escondiam a cobiça nos tesouros americanos, com os quais alargariam e consolidariam seus domínios e influências.

Gabriel Soares de Souza, um dos aventureiros em busca das diversas formas de riqueza, habitante do recôncavo da Bahia, é também o autor do Tratado descritivo do Brasil em 1587, grande documentário, circunstanciado, da terra e dos seus habitantes, flora e fauna, que é fonte essencial e precursora para a história do Brasil. Ao tratar dos indígenas, com ênfase aos Tupinambás, que habitavam a costa entre os rios São Francisco e Real, que veio a constituir o território de Sergipe,  o cronista observa que eles cortavam as naturas dos vencidos, depois de mortos, as quais levam para darem as suas mulheres, que as guardavam depois de mirradas no fogo, para nas suas festas darem de comer aos maridos por relíquias. Diz Gabriel Soares de Souza: “E não contentes estes selvagens de andarem tão encarniçados neste pecado, naturalmente cometido, são muito afeiçoados ao pecado nefando (homossexualismo) entre os quais se não tem por afronta, e o que se serve de macho, se tem por valente, e contam esta bestialidade por proeza, e nas suas aldeias pelo sertão há alguns que têm tenda pública a quantos os querem como mulheres públicas.”

O cronista português, nascido no Ribatejo, provavelmente em 1540, e falecido na Bahia em 1592, algum tempo depois de naufragar na entrada do rio Vaza-barris, com seu navio “Grifo Dourado” vai adiante na informação da vida sexual e dos costumes indígenas da costa sergipana, dizendo: “São os Tupinambás tão luxuriosos que não há pecado de luxuria que não cometam; os quais sendo de muito pouca idade têm conta com mulheres, e bem mulheres; porque as velhas, já desestimadas dos que são homens, granjeiam estes meninos, fazendo-lhes mimos e regalos e ensinam-lhes a fazer o que não sabiam, e não os deixam de dia nem de noite.” (continua)

 

 

 

 

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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