O ESCRIVÃO, O CRONISTA E OS PAPAS (II) – A organização da família entre os indígenas

Sendo seres desconhecidos em um mundo também incógnito, os indígenas brasileiros contradiziam, com suas existências, os ensinamentos correntes no velho mundo, sobre a origem dos povos. Em 1537, diante de tal fato, sob o papado de Paulo III, a Igreja reconhecia os autóctones como pertencentes a espécie humana e que dispunham de alma como os colonizadores. A posição da alta hierarquia da Igreja Católica abria caminho, por exemplo, para introduzir nas aldeias brasileiras a noção cristã de casamento e de família. O projeto, de raízes ibéricas, era de cristianização do novo mundo, para a construção de nova sociedade, sem pecado, fundada na moral religiosa.

É da velha tradição religiosa, abonada por textos antológicos, como a Sumula Teológica de São Tomás de Aquino, com exegese de Alejandro de Hales e uma equipe, citado por Josep-Ignasi Saranyana, da Universidade de Navarra em A teologia sobre a mulher na Universidade de Paris (1215-1245), a idéia de que o homem é mais digno, mais forte e menos culpado do pecado original, enquanto a mulher, em conseqüência, é menos digna, é débil e tem mais culpa do pecado original, o que justificaria a sua sujeição ao homem. A Igreja considerava, como ainda hoje, que o casamento é uma instituição divina, base da formação da sociedade, com uma relação permanente. Tais pressupostos lastrearam as relações dos descobridores com as populações descobertas na costa brasileira.

Documentos papais, de Paulo III, Pio V e Gregório XIII, tratando da organização familiar entre os indígenas, corroboram a posição antiga e dogmática da Igreja. Em 1º de junho de 1537, o Papa Paulo III afirma que “Com grande alegria espiritual da nossa alma temos sabido que muitos indígenas da Índia Ocidental e Meridional, mesmo ignorantes da lei divina, ilustrados, sem embargo, pela graça do Espírito Santo, têm arrojados de suas mentes e de seus corações os erros que até agora praticam e desejam e se propõem abraçar a Verdade da fé católica e a unidade da Santa Igreja e viver segundo o rito da mesma Igreja humana… Com respeito a seus matrimônios mandamos que se observe o seguinte: os que antes de sua conversão tinham, segundo os costumes deles, várias esposas e não recordam qual foi a primeira que tomaram, uma vez convertidos a fé tomarão uma delas, a que queiram, para contrair com a mesma matrimônio por palavras de presente, como se acostuma e os que recordam qual tomaram primeiro, devem conservar esta, separando-se das outras. Os concedemos assim mesmo que, se são parentes ainda que em terceiro grau de consangüinidade ou de afinidade, não se lhes impeça de contrair matrimônio.” (Da constituição de Paulo III – Atitudes).

Em 2 de agosto de 1571, Pio V retoma o assunto, fazendo a seguinte preleção: “Como aos índios que permanecem na infidelidade se os permite, segundo temos sabido, ter várias esposas, às quais repudiam eles por causas levíssimas, se os há concedido que, ao receber o batismo, permaneçam com aquela que juntamente com o marido está batizada; e como ocorre muitas vezes que essa não é a primeira esposa, de onde resulta que tanto os ministros como os bispos, julgando que aquele não é o verdadeiro matrimônio, se vem atormentados por escrúpulos gravíssimos; e como por outra parte seria muito duro separar os índios das esposas em união das quais eles mesmos receberam o batismo, sobretudo porque seria a eles muito difícil encontrar a primeira esposa; portanto, Nós… a ter das presentes letras, declaramos com autoridade Apostólica que os índios já batizados segundo se tem dito, e os que adiante se batizem, podem permanecer, como com esposa legítima, separando-se das outras, com aquela de suas esposas que se tenha batizado ou se batize com eles, e que tal matrimônio entre eles seja matrimônio firme e legítimo.” (Da constituição de S. Pio V – Romani Pontificis).

A Igreja, pelos seus predicadores construíram, nos púlpitos, um discurso moral, com ampla repercussão política na formação da sociedade brasileira. A figura do mameluco, que tanto correspondia ao “casamento” dos filhos de europeus – portugueses, espanhóis, franceses e holandeses – com indígenas brasileiras era execrada. O jesuíta Nicolau Orlandini, autor da Historia Societatis Iesu, de 1615, dizia em Roma: “ Tudo teria corrido bem para o Cristianismo e o progresso da fé se os mamelucos gerados e nascidos desde João Ramalho, de pai lusitano e mãe brasileira, germens péssimos de uma índole de uma estirpe má, não tivessem tudo perturbado.” O apelido Mameluco era usado, na Europa, especialmente na Espanha durante a Reconquista, para identificar os filhos de mouros e cristãs e de cristãos e mouras, e sua aplicação no Brasil fazia dos indígenas, e mais tarde dos negros, infiéis.

Frei Vicente do Salvador, em sua História do Brasil, de 1627, relata um fato tendo como personagem um Mameluco, que com seu cavalo falsamente falante enganou a muitas pessoas. Tais exemplos afiançam a rejeição dos conquistadores aos mestiços, que mais e mais nasciam e cresciam no Brasil e seriam, com a Proclamação da República, uma expressão estatística considerável. Sergipe, por exemplo, em 1890, tinha a maioria da sua população formada por raças combinadas, sendo o Estado com maior mestiçagem, entre todos da federação brasileira. (continua).

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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