Há frases repetidas à exaustão sem análise e reflexão como se fossem verdades incontestes.
A de Winston Churchill sobre a democracia, por exemplo, é uma destas lições jamais ditadas por santos, deuses ou taumaturgos, fossem estes Moisés, Jesus Cristo, São Francisco de Assis ou Maomé.
A democracia, todavia, não é algo inconsútil a dispensar reparos.
De Churchill, sabe-se que a frase foi dita num contexto belicoso; a Grã-Bretanha estava em guerra contra a Alemanha de Adolf Hitler.
A democracia pressupunha liberdade de ir e vir, pensar e cultuar.
Isso imperava na monarquia parlamentar inglesa, diferente do que acontecia no regime nazista que escravizava povos, tolhia as liberdades de culto e raça, e perseguia dissidentes.
No contexto da frase de Churchill, o mundo democrático se restringia a poucos povos; os de língua inglesa, sobretudo a Inglaterra e os Estados Unidos, os franceses, em rotineiras revoluções e convulsões sociais, a Suíça nas alturas alpinas, na Suécia, Dinamarca e Noruega, nas geleiras frias das distantes monarquias bálticas.
Fora estes, o comum era o desapreço à democracia, sendo cultuados os regimes fortes com suas ditaduras mundo afora; na Espanha, com Francisco Franco, após uma sangrenta guerra civil, em Portugal com o Professor Salazar, na União Soviética, com os novos Czares Lenin e Stalin, na Turquia com o herói guerreiro Atartuk, no Brasil com Getúlio Vargas, e na Argentina com Juan Peron e tantos outros, tiranos ou tiranetes, menores nas Repúblicas ditas de bananas.
No Brasil, o desapreço à democracia sempre estimulou golpes e derrubadas, as eleições sempre denunciadas como eivadas de fraudes, desde o tempo do “bico de pena” ao emprenhamento das urnas, chegando até à cédula única.
Neste sentido, lembro dos chamativos discursos de verbosos políticos sergipanos, invocando a intervenção federal nos pleitos eleitorais do “glorioso exército nacional”, quando as urnas não lhes eram favoráveis.
Afora isso e por refluxos de guerra-fria, a ameaça comunista sempre se manifestava por extenso desejo socialista, ditados por bem falantes e diletantes periodistas, sua excedente repulsa ao imperialismo yankee, entremeando uma pregação simpática às Repúblicas Soviéticas, então ditaduras paradisíacas dos trabalhadores sem patrão.
Desnecessário dizer que tais descaminhos vingaram agitação incontida, sendo derrubada a República, dita “populista”, tempo da minha infância “baby-boomer”, até 1964, quando a democracia foi solapada, dando espaço para quase duas décadas de regime militar com cinco generais presidentes.
Necessário dizer em contraposição majorada, que neste período dito “sombrio e autoritário”, nunca o Brasil se desenvolveu tanto, com índices de crescimento jamais vistos no antes, no depois, e sobremodo no agora, embora se escoiceasse o regime, culpando-o por não repartir os frutos auferidos em crescente miséria.
Histórias à parte, a miséria cresceria depois, sobretudo agora, com excedente mendicância em cada esquina, como flanelinhas, essa novidade que só existe aqui, como paisagem semafórica.
Com semáforos ou sem eles, a democracia para ser plena pressupõe a liberdade de expressão e escolha.
No tempo do AI-5, embora Senado, Câmara de Deputados e a Edilidade funcionassem com Eleições periódicas, tal liberdade de expressão não era plena.
Havia muita gente cujos direitos políticos tinham sido cassados, o congresso fora fechado por alguns dias, congressistas perderam seus mandatos e até juízes, desembargadores e ministros foram aposentados via determinação “revolucionária”, como se falava então.
O “famigerado” AI-5 fora uma resposta à agitação das ruas nos idos de 1968, revérbero da mesma inquietação dos estudantes franceses da Sorbonne.
Se lá na França o General De Gaulle usou o exército de Massu para acabar a farra de “La Chienlit”, aqui muita gente resolveu cutucar o cão com vara curta achando que uma mera passeata dobraria o regime.
E assim, sem pejo de ser uma “Ditadura Envergonhada”, o regime resolveu assumir a condição que lhe denunciavam nas ruas.
Virou uma “Ditadura Escancarada”, aquela que nunca se renderia por “Derrotada”, mesmo sendo “Encurralada”, e findar “Acabada”, como assim pensou Elio Gaspari, nos seus livros em versão parcial, apaixonada.
Quem viveu aqueles tempos e lê o vasto acervo histórico daquele período constata que nada aconteceu sem causa, e o apoio popular, embora se diga o contrário, foi amplo.
E tal aplauso foi tão massivo em tempos de “Brasil, ame-o ou deixe-o”, que os poucos que lutaram contra, enaltecem-se como heróis de uma causa perdida.
Agora, nesses tempos atuais de Bolsonaro, houve uma grande celeuma porque um dos seus filhos boquirrotos falou do AI-5, com saudade ou com lembrança, diante do noticiário vindo do Chile, da Bolívia e da Venezuela, com o populacho indócil na rua destruindo a democracia.
E só porque foi assim, eis a nossa democracia ameaçada.
No tempo dos militares, o Presidente Ernesto Geisel, aquele que iniciaria o abrandamento do regime mediante “uma abertura lenta, gradual e segura” dissertou sobre uma “democracia à brasileira”, ele que bem sabia o que dizia, mantendo firme os cordéis que estavam sendo retorcidos por radicais subterrâneos ou explícitos, em más intenções pouco sabidas.
Intenções conhecidas e talvez ingênuas à parte, foram outras como a pilhéria exarada pelo jurista Sobral Pinto, se contrapondo ao sisudo Presidente Geisel: “Não existe democracia à brasileira. O que existe é peru à brasileira”.
A piada refestelou néscios e pascácios, igual ao que se viu agora, alguns querendo até suscitar condenação ao Deputado por ter se referido ao AI-5, como remédio a coibir desmandos e quebra-quebras.
Dizem que na Democracia todas correntes merecem ser consideradas no debate das ideias.
Nesse contexto, dizia-se que no Regime Militar vigia uma ditadura porque entre outras coisas estavam proscritos os partidos ditos comunistas.
A Democracia, explicava-se então, não poderia permitir a existência de um partido “internacionalista” que pregasse a sua dissolução em nome da “Ditadura do Proletariado”.
Que Democracia será essa agora que deseja cassar o pensamento divergente, mesmo sendo equivocado ou contraditório, de louvar algo para ser lembrado, não permanecer esquecido e evitar repetido como o AI-5?
Não é bom relembrá-lo, nesses tempos incriminais via “Constituição Cidadã”, em que o transitado em julgado se faz tão distante quão inatingível, pela Constituição vigente, assumida tão perfeita, insatisfatória e irreformável, que melhor restará se esfarinhando deleteriamente, por si mesma, petrificada?
O que dizer do noticiário vindo de fora a inspirar tantas desordens e tantas manifestações pacíficas como os jovens bolivianos gritando em Buenos Aires contra um quarto mandato insaciável de Evo Morales: “Democracia si! Ditadura no!”?
Em tempos vencidos, contemporâneos à “Democracia à Brasileira” de Ernesto Geisel, dizia o sábio Nelson Rodrigues que “A maior desgraça da democracia, é que ela traz à tona a força numérica dos idiotas, que são a maioria da humanidade”.
Que dizer de Jorge Luís Borges, para quem “A democracia é um erro estatístico, porque na democracia decide a maioria e a maioria é formada de imbecis”?
E o que dizer de Benjamin Franklin para quem “Democracia são dois lobos e uma ovelha decidindo sobre o que comer no jantar”?
Quanto ao problema surgido com a não punibilidade do crime, segundo incontroversa, mas oscilante e tergiversante decisão por 6X5, do Supremo tribunal Federal, enquanto cláusula pétrea constitucional, bem vale repetir o cáustico jornalista Henry Louis Mencken (1880-1956): “Para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada.”
Que as ruas não se inflamem!