A Federação Brasileira de Academias de Medicina promoveu recentemente em Belo Horizonte o II Colóquio Acadêmico. Fui convidado para ser um dos debatedores na sessão de exibição do filme O Físico, ao lado do Dr. Humberto Correia da Silva Filho, psiquiatra mineiro professor da UFMG. Presidiu a sessão o eminente confrade Paulo Amado Oliveira, presidente da Academia Sergipana de Medicina.
O filme é emblemático e sua trama se passa inicialmente na Inglaterra, na virada do século X para o Século XI. Ainda criança, Rob (Tom Payne) vê sua mãe morrer em decorrência da “doença do lado” (nada mais do que um caso de apendicite). Ele cresce sob os cuidados do barbeiro ( e charlatão) Bader (Stellan Skarsgård), que promete curar doenças. Adulto jovem, Rob acumula todos os conhecimentos de Bader sobre cuidar de pessoas doentes (menos as trapalhadas), mas sonha em saber mais. Faz então uma longa e penosa viagem rumo à Ásia para conhecer e estudar com Ibn Sina ou Avicena, como ficou mais conhecido no Ocidente, o “Príncipe dos Clínicos”, que viveu entre 980-1037, considerado ainda como o verdadeiro intérprete de Galeno. No filme, Avicena é interpretado pelo consagrado ator Ben Kingsley, o mesmo que fez o papel de Gandhi.
O filme O Físico foi lançado no Brasil em 2014, tem direção de Philipp Stölzl e recebeu indicações para Prêmio de Cinema Alemão de Melhor Fotografia. Não alcançou bons índices de bilheteria e o sucesso esperado, passou até que despercebido, mas deixa uma bela mensagem de persistência, determinação e humanismo médico!
Chamou-me especialmente a atenção, de uma forma muito expressiva, as cenas de narrativas: quando a moça lê uma história para a paciente sarar. E quando ela mesma, doente, ouve histórias contadas por seu médico. Parece-me algo importante: a medicina narrativa que cura, as histórias dos pacientes que temos de escutar, com paciência e calma, porque são terapêuticas.
Outro ponto alto do filme é mostrar cenas dos ensinamentos de Avicena, reunidos num dos compêndios mais importantes da História da Medicina, chamado Cânone de Medicina, que o jovem aprendiz termina levando para o ocidente. As aulas no anfiteatro ao ar livre, evoca os princípios humanísticos da medicina, com a arte em primeiro lugar, os estudos de música e outras manifestações artísticas.
Esses médicos admiravam a cultura helênica., absorvendo os ensinamentos de Aristóteles, Hipócrates e Galeno, entre outros. Nenhum era só médico; a medicina era uma parte do seu saber, distribuído entre a música, filosofia, matemática e astronomia.
Momento marcante do filme é o aparecimento da praga, ou peste negra, ou peste bubônica. Acredita-se que um terço da população mundial da época foi morta. O terror vivido diariamente em cada cidade sob o espectro da morte inevitável trouxe o reino do caos, o desaparecimento das leis e da ordem. Os curiosos no tema podem ler o testemunho de Giovanni Boccaccio, sobrevivente da epidemia da peste negra na Europa, no clássico de sua autoria – Decameron – a descrição dramática desse acontecimento.
Considerei sensacional a cena que Cole fica desolado por tantas mortes com a Peste Negra. Ele olhava para a quantidade de mortos e a quantidade de sobreviventes à doença e não se conformava. (Até que ele conseguiu parar a contaminação, mas entre os que já estavam doentes, pouquíssimos sobreviviam). Em total tristeza ele desabafa com seu mentor e fala o quanto se sentia fracassado por não conseguir salvar a todos.
Na idade média era proibida a dissecção de cadáveres humanos, por ordem da Igreja,, que considerava tal prática um pecado por desrespeito ao homem. Cabe ao jovem Rob Cole quebrar esse dogma, na calada da noite, pondo em cheque conceitos até então vigentes. Com esses estudos, ele chega ao diagnóstico da causa do “doença do lado”, que afligira sua mãe quando ele ainda era jovem e que a levou ao óbito: a apendicite que leva à gangrena e à morte se não for feita uma intervenção de urgência.
Avicena, o mentor do jovem aprendiz, em determinado momento, vira para ele e fala “Sucesso entre muitos fracassos é um fardo que devemos carregar quando escolhemos isso”.
Avicena, pois, era médico e não um físico, como foi traduzido no título do filme para o português. Acontece que na Idade Média não existia a palavra “médico” como conhecemos hoje, o que pareceu, para o tradutor, mais sensato manter a lógica do passado, livrando-o assim de um maior assédio dos críticos de cinema!
Como nos diz sabiamente o colega Heitor Rosa no Capítulo “A Medicina na Idade Média”, contido no livro “Seara de Asclépio, uma visão diacrônica da Medicina”, organizado pelos confrades Vardeli Alves de Morais, Gil Eduardo Perini e Joffre Marcondes de Rezende (in memoriam), “Ao contrário do imaginário popular, a chamada Idade Média não foi um período obscurantista nem “idade das trevas!”
“…O estudo da Idade Média leva-nos a reflexões sobre o esforço do homem para progredir e o grande legado para os séculos posteriores, como a criação de universidades que até hoje mantêm o seu prestígio ou as grandes obras de engenharia como as catedrais e pontes que desafiam o tempo”
Vimos, em O Físico, pessoas e fatos acontecidos há mil anos e por isso pode ser tentado a sorri ou desdenhar da ingenuidade da época, comparadas ao nosso tempo. Se pensamos assim, o que pensarão de nós os habitantes do ano de 3020? Seremos vistos tão primitivos?
Enfim, gostaria de deixar como reflexão para as pessoas do nosso tempo, como é importante renovarmos práticas humanísticas na formação médica, de voltarmos a discutir a história, filosofia, artes, música, literatura na prática médica, na busca incessante de retomar a relação médico-paciente, baseada no amor e na fraternidade.