O fracasso da imposição judicial da fidelidade partidária

Um dos grandes males que sempre assolou a democracia representativa brasileira após a redemocratização foi a infidelidade partidária.

O troca-troca partidário era uma constante. Diversos candidatos eleitos por determinado partido político, antes mesmo de tomar posse ou durante o exercício do mandato, mudavam de partido; em muitos casos, o novo partido do candidato eleito disputara a eleição como adversário programático e ideológico do partido pelo qual concorrera e ganhara a eleição. O fisiologismo era a tônica desse processo, e na maioria dos casos, o troca-troca partidário se fazia na direção de partidos de oposição rumo a partidos que compunham base de apoio político do governo. É evidente que, nesse quadro, a soberania popular ficava vilipendiada, pois a correlação de forças oposicionistas conferida pela decisão do eleitorado se via reduzida e o parlamento deixava de representar fidedigna e proporcionalmente a vontade do povo.

Foi nesse contexto que, em 2007, Tribunal Superior Eleitoral e Supremo Tribunal Federal, em sucessivos julgamentos e decisões, impuseram, em nome da aplicação de princípios constitucionais, a fidelidade partidária, mesmo ausente norma expressa da constituição que impusesse a perda de mandato do “trânsfuga” ou “desertor” (termos utilizados pelo STF e pelo TSE).

Essa imposição judicial da fidelidade partidária foi aplaudida pela sociedade e pela mídia e representou, num primeiro momento, a necessária coibição ao procedimento fisiológico de desfiliações e filiações partidárias. Com a imposição judicial do princípio segundo o qual o mandato eletivo pertence ao partido, e não ao candidato por ele eleito, inibiu-se a desfiliação partidária oportunista de políticos com mandato.

Desde as eleições municipais de 2008, e assim também nas eleições nacionais e estaduais de 2010, portanto, o eleitor, ao efetuar a escolha de seus representantes políticos, já sabe de antemão que, em regra, conferirá ao partido político, e não à pessoa física do seu candidato, o poder de lhe representar politicamente. Daí a importância de o eleitor procurar se informar melhor, não somente em relação à biografia e às propostas dos candidatos, mas sobretudo obter informações precisas sobre o programa de atuação de cada partido político, bem como de seu histórico de atuação, tanto no Poder Executivo como, sobretudo, no âmbito parlamentar. Qual a linha ideológica do partido político? Que ideais defende? Quais projetos de gestão administrativa apresenta? Que bandeiras de luta tem apresentado à sociedade? Como o partido político tem se comportado em votações de interesse da coletividade?

Isso porque, a rigor, de nada adianta ao eleitor votar em um candidato pelo qual se sente representado se, mais adiante, eleito, esse candidato resolve mudar de partido. Nesse caso, o “trânsfuga” perderá o mandato, e o eleitor não será mais por ele representado, e sim por um outro, que tenha sido eleito suplente pelo partido/coligação eleitoral (a não ser que demonstre, em específico processo na Justiça Eleitoral, a “justa causa” para a desfiliação, ou seja, a comprovada perseguição política ou mudança significativa de orientação programática do partido).

Pois bem, a expectativa era a de que, após a imposição judicial da fidelidade partidária, o protagonismo do eleitor na democracia representativa se daria por via do protagonismo dos partidos políticos.

Quatro anos após, porém, já é possível submeter a imposição judicial da fidelidade partidária a uma reflexão crítica, para concluir que, lamentavelmente, mostrou-se um grande fracasso.

Com efeito, os partidos políticos não aproveitaram a oportunidade para consolidar-se programaticamente, ou ao menos iniciar um caminho consistente rumo a essa consolidação. As campanhas eleitorais de 2008 e de 2010 continuaram focadas nas pessoas dos candidatos, nas propostas dos candidatos, sem o devido estabelecimento do liame político-partidário.

Os partidos políticos, com raríssimas exceções: a) não têm se preocupado em expor os seus programas, o seu histórico de atuação enquanto tais; b) não têm se preocupado em expor que, na votação de determinado projeto de lei, todos os membros da bancada parlamentar votaram uniformemente, a favor ou contra, por essa ou aquela razão; c) não têm se preocupado em apresentar ao eleitor o diferencial de sua atuação administrativa, enquanto gestores da coisa pública; d) não têm se preocupado em convencer o eleitor de que aquele partido possui uma forma honesta e íntegra de gerir o dinheiro do povo; e) não têm se preocupado em demonstrar as experiências administrativas partidárias já realizadas. Sem isso, fica difícil, para não dizer impossível, conferir consistência ideológica e programática aos partidos, que permita ao povo orientar as suas escolhas a partir de simpatia e concordância com a linha programática de atuação partidária.

Demais disso, outras duas insuficiências da imposição judicial da fidelidade partidária podem ser apontadas.

A primeira, resultante da ultra-ativista inclusão, pelo Tribunal Superior Eleitoral, da “criação de novo partido” como hipótese de “justa causa” para desfiliação partidária, capaz de permitir a manutenção do mandato do político eleito por um partido e que se filia a um novo partido, recém criado e até então inexistente. Essa possibilidade, prevista no inciso II do § 1° do Art. 1° da Resolução TSE n° 22.610, abriu a janela que os políticos já perceberam para mudar de partidos sem perder o mandato. Quando circunstâncias políticas, as mais das vezes fisiológicas e não programáticas, fazem com que se torne “imperiosa” a mudança de partido, então a “chave” já está descoberta: cria-se um novo partido político. A criação do PSD, em processo de finalização, é exemplo desse fenômeno: esse novo partido, criado a partir sabe-se lá de qual linha programática ou ideológica, já surge grande, pois políticos dos mais diversos partidos – inclusive com mandatos parlamentares em todas as esferas federativas e de linhas de atuação as mais diversas e até mesmo opostas – a ele aderiram como forma encontrada para mudar de partido sem perder seus mandatos. A senha está dada, então, para burlar a fidelidade partidária com base em regulamentação da matéria admitida pelo próprio Tribunal Superior Eleitoral.

A segunda resulta da possibilidade – que decorre dos termos da regulamentação dos processos de perda de cargo eletivo e de justificação de desfiliação partidária (Resolução TSE n° 22.610) – de que, por simples acordo entre o “trânsfuga” e o seu partido, a desfiliação partidária seja aceita como de justa causa e o “trânsfuga” não perca o mandato. Assim, o “trânsfuga” propõe, com base no Art. 1°, § 3° da Resolução TSE n° 22.610, ação de declaração da existência de justa causa, pede a citação do seu partido que, citado, concorda com o pedido e reconhece haver a justa causa. O eleitor, não consultado, perde um representante que elegeu como parte de um segmento político-partidário pelo qual se via representado, e outro segmento político-partidário, que não obteve da votação popular aquele representante, recebe, por acordo de cúpulas, mais um representante. A correlação parlamentar de forças não corresponde àquela correlação determinada na votação popular.

Talvez seja o caso de aprendermos a seguinte lição: a judicialização da política e, em especial, a judicialização da política partidária, não são fórmula mágica de redenção da democracia brasileira.

Concluo esse artigo reforçando o que já tinha escrito na coluna publicada em 10/10/2007 (https://.infonet.com.br/mauriciomonteiro/ler.asp?id=66426&titulo=mauriciomonteiro):

“A admissão de um processo administrativo de competência da Justiça Eleitoral – mediante o qual será possível ao “desertor” ou “trânsfuga” justificar a desfiliação partidária e preservar o mandato – representa uma perigosa agudização da cada vez mais contemporânea tendência da chamada judicialização da política.

É verdade que em todo o mundo o Poder Judiciário assumiu, na contemporaneidade, papel de protagonista das relações sociais e mesmo políticas. Entretanto, é algo temerário entregar ao Poder Judiciário a missão de decidir se determinado partido político descumpriu o seu programa partidário ou mudou significativamente a sua orientação programática, se se comportou de modo a perseguir ou constranger indevidamente um de seus filiados. O Poder Judiciário não pode se transformar no guardião paternalista da sociedade. Cabe ao povo-eleitor-soberano, em última análise, avaliar o comportamento dos seus representantes (partidos e políticos) no exercício das tarefas políticas, avaliar a fidelidade de tais representantes aos propósitos difundidos em campanha eleitoral e em seus programas partidários.

Transferir essa tarefa ao Poder Judiciário é transferir tarefa originariamente pertencente ao povo, com prejuízo do amadurecimento da democracia. Com esse tipo de tutela judicial, é mais difícil o processo de conscientização popular que habilite o cidadão-eleitor a democraticamente exigir fidelidade dos partidos políticos às suas orientações programáticas e às suas plataformas eleitorais.  Ou seja: fica mais difícil o aprendizado democrático rumo ao efetivo respeito à prevalência da vontade soberana do povo, titular de todo o poder.”

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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