Quase completada a primeira quinzena, confirmam-se três características do governo Bolsonaro que ninguém pode contestar: 1 – o presidente tem se esforçado para cumprir à risca o que prometeu na campanha eleitoral, sem contrariar nenhum traço da personalidade que se tornou conhecida no ano passado; 2 – ele é implacável na intenção de levar o país a dar uma guinada ideológica radical à direita (ou extrema-direita), mesmo que precise adotar as medidas mais arrogantes, extravagantes ou estapafúrdias; 3 – ele faz a alegria da imprensa com surpresas dia após dia e não se faz de rogado na hora de desmentir as impróprias decisões.
Se o governo veio disposto a agradar ao mercado, e isso inclui o discurso utópico de retirar o Brasil do comunismo, à Olavo de Carvalho, e o macaquear das excentricidades de Donald Trump, uma área tem recebido especial atenção nessa largada inicial: é a agroindústria. Alguns movimentos têm acontecido para claramente beneficiar a elite do campo.
Logo na reorganização da administração federal, Bolsonaro não extinguiu, mas tratou de esvaziar a Funai (Fundação Nacional do Índio), agora subordinada ao Ministério das Mulheres, da Família e dos Direitos Humanos, quando sempre fora ligada ao Ministério da Justiça. Com uma canetada, decretou a retirada das principais funções do órgão, redirecionando os interesses na demarcação de novas terras indígenas e conservação do meio ambiente.
O capitão assinou uma medida provisória que delega ao Ministério da Agricultura, chefiado pela até recentemente líder da bancada do agronegócio na Câmara, Tereza Cristina da Costa, a tarefa de identificar, delimitar, demarcar e registrar terras indígenas, cumprindo desde já um antigo desejo da agroindústria (especialmente do negócio da soja e da agropecuária), das madeireiras e da bancada ruralista do Congresso, que considera os índios um entrave para o desenvolvimento.
Ao mesmo tempo, o governo cessou os processos de demarcação já existentes e Bolsonaro ameaçou com uma contestável e certamente ilegal revisão das terras já demarcadas, prometendo “negociar” com os índios permissões para a exploração comercial dessas áreas pela agricultura, pecuária e mineração. Como consequência, os índios, que já estão sofrendo sem a assistência dos médicos cubanos, agora encaram o recrudescimento das invasões das suas reservas.
Uma Medida Provisória também alterou a política de identificação e demarcação de territórios quilombolas, retirada do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e repassada para o Ministério da Agricultura. Da mesma forma, o Serviço Florestal Brasileiro, antes sob a responsabilidade do Ministério do Meio Ambiente, agora também está sob o guarda-chuva do Ministério da Agricultura. Ou seja, o agronegócio é que vai decidir se regulariza ou não as terras indígenas, quilombolas e as reservas florestais.
No dia 3, o presidente determinou às superintendências regionais do Instituto a interrupção de todos os processos para compra e desapropriação de terras. De acordo com o Incra, 250 processos em andamento foram suspensos. Mas, na quarta-feira passada, ele voltou atrás e revogou os memorandos com aquela ameaça à reforma agrária no país.
O Ibama também passa por esse processo acelerado de descaracterização e enfraquecimento. Desde a campanha, Bolsonaro afirmava que o Ibama e o ICMBio não podiam sair por aí “multando a torto e a direito” e que “essa farra vai acabar”. Ele mesmo tinha sido multado por pescar em área proibida para tal atividade, imagina!
A presidente do Instituto, Suely Araújo, pediu exoneração do cargo na segunda-feira, uma resposta após o órgão ser questionado pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, sobre uma licitação para locação de veículos. O ministro, que é condenado por cometer crime ambiental quando secretário do Meio Ambiente no governo de Geraldo Alckmin, demonstrou desconhecer o órgão e o processo licitatório, que é regular.
Mas para desmoralização do Ibama, na quarta-feira, o Instituto teve que anular a decisão de multar em R$ 10 mil o presidente Jair Bolsonaro, por conta daquela pesca irregular em Angra dos Reis, em 2012. A decisão decorre de um estranho parecer da Advocacia-Geral da União, que agora entendeu que Bolsonaro não teve acesso ao devido processo de defesa.
Voltar atrás nas decisões lembra os desmentidos da campanha eleitoral e já faz parte da personalidade do novo governo. Em questão de dias, o presidente anunciou aumento do IOF, revisão da tabela do imposto de renda e uma idade mínima para a reforma da Previdência. Foi desmentido. Quase no mesmo instante e após a interferência dos generais, a tese de que o país poderia abrigar uma base militar americana foi abandonada.
O novo presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães, teve que revisar o discurso um dia depois de ter dito que elevaria as taxas de juros no crédito imobiliário para a classe média. Coincidência: ele é genro de Leo Pinheiro, ex-executivo da empreiteira OAS, que modificou seu depoimento para incriminar o ex-presidente Lula na ação do triplex do Guarujá.
A mais recente volta atrás foi na mudança nos critérios de avaliação dos livros didáticos. O Ministério da Educação tinha retirado de um edital para novos livros a exigência de que as obras tivessem referências bibliográficas e que promovessem “a cultura e a história afro-brasileira, quilombola, dos povos indígenas e dos povos do campo” e o compromisso com a não violência contra a mulher. Mas a pressão mais uma vez funcionou e a desistência veio no fim da tarde da mesma quarta-feira, dia 9.
O próprio ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodrigues, já tinha recebido uma reprimenda de um grupo de escolas de elite, de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, preocupadas que “o país entre numa rota de retrocesso”. O ministro afirma que as escolas e os professores estão ensinando “ideologia de gênero” e “doutrinação marxista”. “Isso soa como um discurso anacrônico que remete aos anos da guerra fria no século 20. E é, mais uma vez, um deslocamento da questão realmente grave que é a da dificuldade de tornar as crianças e jovens brasileiros aprendizes eficientes e preparados para os desafios do mundo atual”, diz o texto das escolas.
Mas em termos de discurso retrógrado e completamente descontextualizado ninguém supera a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves. No mês em que mulheres do mundo fazem uma campanha para deixar os pelos crescerem, como forma de expressar que elas fazem o que quiserem dos seus corpos, a ministra prega uma “nova era”, em que meninos vestem azul e meninas vestem rosa.
Na mais recente polêmica, após a circulação de um vídeo na quarta-feira, 9, Damares afirma que a Igreja Evangélica “perdeu espaço na história e na ciência” quando “deixou” a Teoria da Evolução entrar nas escolas sem questioná-la. “A Igreja Evangélica deixou a ciência sozinha, caminhar sozinha, e aí cientistas tomaram conta dessa área e nós nos afastamos”, prega a advogada e pedagoga que um dia teve a visão de Jesus subindo numa goiabeira. O ministro da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes, ousou discordar da colega: “Não se deve misturar ciência com religião”.
Os evangélicos neopentecostais, diga-se, são os fiadores da ideia de transferir a embaixada do Brasil de Tel Aviv para Jerusalém. Confundindo o moderno Estado de Israel com os judeus dos tempos bíblicos, eles consideram como uma verdadeira bênção a mudança da presença oficial brasileira para a Terra Santa. Diante da encrenca que a decisão pode render com árabes e iranianos, importantes parceiros comerciais do Brasil, ninguém duvide que Bolsonaro também volte atrás nessa quimera.
Em meio ao bate cabeça, vazaram as informações de que o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, usou notas fiscais sequenciais da empresa de um amigo para solicitar verba indenizatória da Câmara dos Deputados, e da mega promoção obtida pelo filho do vice-presidente, Hamilton Mourão, no Banco do Brasil. Mourãozinho triplicou o salário e agora ganha módicos R$ 37 mil.
Na sexta-feira, soube-se que Bolsonaro nomeou um “amigo particular” para a gerência executiva de Inteligência e Segurança Corporativa da Petrobras, um salário de R$ 50 mil, “mesmo que muitos não gostem”, tuitou o presidente.
Enquanto isso, ninguém explica a relação suspeita da família com o motorista Queiroz, não se fala mais do homem que teria dado a facada no então candidato a presidente, tentam empurrar para debaixo do tapete o assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson. Não se pode cobrar moralidade sem explicar essas questões pendentes.
Talvez esse seja um governo muito bom para os amigos e a elite nacional.