O homem lúdico, senhor de guardados atemporais, que faz contraponto com a responsabilidade pela sobrevivência diária, passa pela existência desapercebido, mesmo que viva muito, como foi o caso de Lió, ou de Desidério de Oliveira, outro homem de memória, de Cedro de São João. Sua condição social, seu aprendizado, pouco importam, pois tudo sucumbe diante da memória acumulada ao longo da vida, como fonte perene de sabedoria que diverte, entrete e ensina, graças aos valores que adensam cada uma das estórias narradas por este tipo de gente, depositário fiel de repertórios universais. Lió foi grande porque o seu saber continha fragmentos de contos antigos, de outros povos, que serviam para ligar a cultura brasileira a outros matizes, fora da influência conhecida. Jackson da Silva Lima recolheu de Lió centenas de estórias, carga literária para um livro inteiro, e certamente teve no contador de estórias seu mais importante informante. Bráulio do Nascimento recolheu narrativa de Lió que remetia para a velha Grécia e para o seu poeta Homero, que viveu no século IX, antes de Cristo. Mesmo que a Ilíada e a Odisséia sejam considerados um resumo de cantos que os antigos aedos espalhavam no leito da oralidade, Homero ficou para o resto do mundo como um símbolo de cultura humana universal. Lió, ao seu modo, foi um Homero da prosa, semeando estórias pelos muitos lugares por onde andou. As sociedades devem louvar tais figuras, pelo que elas representam ao lado de tantas outras, que militam na diversidade da vida. O Poder Público deve assumir, como forma de respeito e de reconhecimento, uma atitude abrangente, que proteja o fato cultural popular, valorize e considere relevante o papel do brincante e portador de cultura, e os ampare, solidariamente. O patrimônio imaterial, que é a soma dos bens de todos, desafia os governantes, exigindo providências que estanque o descaso que tem grassado, historicamente, em Sergipe, no Nordeste e no Brasil. Homens, mulheres, adultos e crianças que formam grupos e sobrevivem em comunidades de certo modo isoladas, precisam ser incorporadas ao contexto social, com seus produtos, suas artes, seus modos próprios de organização e de cultura. A morte de Lió rouba uma voz plural, rica, fértil, capaz de produzir encantamentos. Seu saber e sua memória, indissolúveis, acompanhou sua longa vida, até a morte, quando o corpo tornou-se inerte, sem a seiva da alma, para reverter à terra, a amada terra sergipana, que antes teve seu suor, sua dedicação, seu esforço físico, com os quais garantiu a sobrevivência, ao lado de mulher e filhos, netos e parentes que pranteam, tristes e sinceros, seu fim. Grande em si e por si, Lió deixa mais do que a saudade e a falta, deixa o exemplo de generosidade, sem limites.
Leocádio Matias dos Santos, o grande Lió, nascido em 1 de janeiro de 1912, em Neópolis, contou 95 anos justos, quando morreu, no último 15 de janeiro, quinta-feira, no Hospital João Alves, em Aracaju. Sua vida de trabalhador, nas fábricas de tecidos e nas usinas de beneficiamento de arroz de Neópolis, ou nos paquetes que singravam o rio São Francisco, antes de ser pedreiro e ajudar a construir prédios e casas em Aracaju, como o Edifício Walter Franco, majestoso Palácio das Secretarias, erguido no Governo de Leandro Maciel, na esquina da Praça Fausto Cardoso com a rua de João Pessoa, não serviu para projetar sua biografia. Viveu e morreu modestamente, mesmo tendo sido um grande sergipano, detentor de uma memória lúdica, tanto nossa quanto do mundo, parte da qual recitou, entre solene e cômico, para Jackson da Silva Lima e Bráulio do Nascimento. Ambos trataram de Lió em seus escritos que correm mundo, como mostruário das velhas estórias que o tempo encantou. Leocádio Matias dos Santos: Lió
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