Era uma vez um leão que era o rei do Parque Nacional de Hwange, no Zimbábue. Cecil tinha 13 anos de idade e era um dos animais mais famosos de toda a África. Sua beleza real e sua proeza como líder de grupo e pai de uma saudável prole atraíam milhares de turistas de todo o mundo que se dirigiam ao pequeno país sul africano somente para admirá-lo. Mas Cecil também era importante para a ciência. Desde a infância, ele era monitorado por pesquisadores da clássica Universidade de Oxford, na Inglaterra.
Um dia, um caçador milionário, prepotente e ilegal, ajudado por guias mercenários e clandestinos, o atraiu para fora do parque e o flechou. Cecil agonizou por dois dias com aquela seta ferindo o seu corpo, até que foi novamente localizado e abatido a tiros. Quando seus restos foram encontrados, estava despido do couro e sem a cabeça, que serviria para adornar a parede de troféus do vivaz e contumaz caçador, um aparentemente pacato dentista americano.
O que o hunter não esperava é que sua vitória sobre o rei da selva se revertesse na derrota da sua vida. As redes sociais infestaram de mensagens contra o caçador, a vizinhança faz manifestação na porta da casa dele, na Flórida, que foi pichada: “Assassino de leão”. Pedaços de carne crua foram jogados na bela entrada da casa. Seu consultório odontológico está abandonado. O caçador e a família sumiram, por vergonha e por medo. Ele se transformou num vilão para a humanidade.
Moral da história: mais vale um leão vivo do que um caçador amedrontado.
Há outras narrativas para essa história. Há os que defendem a caça de animais selvagens porque a atividade representa um valioso negócio para os países africanos. O próprio Zimbábue fatura US$ 40 milhões de dólares por ano com essa fonte de renda. Até as companhias aéreas ganham dinheiro transportando os troféus de caça.
Embora o governo local tenha agora restringido a matança de animais grandes, como leões, elefantes e leopardos, numa demonstração de indignação com o que ocorreu com o leão símbolo do país. Além disso, há um pedido de extradição do dentista Walter Palmer – que pagou US$ 55 mil dólares aos guias que o levaram a Cecil – e foi declarada guerra a outros caçadores supostamente ilegais.
Mas há também os que apelam para supostos sentimentos humanitários: por que essa celeuma toda por causa de um leão se há tantas crianças morrendo de fome e doenças na África todo ano e não se dá a mesma atenção a essa desgraça secular? De fato, embora haja uma melhora no histórico dos números, o Unicef calcula que mais de 6 milhões de crianças morrem anualmente antes de completar cinco anos de idade devido a situações de extrema pobreza, a maioria delas na África.
Considere-se que a mortalidade infantil tem caído e nas últimas duas décadas a redução chega a 50%, segundo o relatório "Progresso para a infância: além das médias", sobre os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, recentemente divulgado. E a maioria das mortes relacionadas a problemas de nutrição ocorre em países que não estão sofrendo com conflitos ou fome, segundo o professor Robert Black, da Escola de Saúde Pública Johns Hopkins Bloomberg, nos Estados Unidos.
"Estes não são os países mais pobres do mundo. São países como a Índia ou a Nigéria ou muitos outros países na Ásia ou África, que realmente poderiam se sair melhor, que têm os recursos para alimentar as crianças. Certamente, os mais pobres têm os maiores problemas com subnutrição, mas mesmo assim há comida o suficiente para alimentar as crianças”, garante o especialista, numa publicação da BBC. Ou seja, há avanços nessa área tão delicada e a solução é possível.
E na verdade tais problemas, a mortalidade infantil e a matança de animais, não se conflitam, antes se sobrepõem. Têm a ver com a velha e inabalável ganância do homem, que invariavelmente resulta no sofrimento dos mais pobres e na degradação da natureza, incluindo a morte de animais.
Hoje há fazendas que criam mamíferos de grande porte na África, alguns deles destinados depois à caça. Mas o número de leões selvagens no continente diminuiu 80% nos últimos vinte anos. A ONU alerta que cerca de 700 leões são caçados por ano na África, um número que preocupa os ambientalistas. Esse é o problema, o desequilíbrio ambiental, e a morte de Cecil simbolizou algo que os humanos toleram cada vez menos.
Até 25 mil elefantes são mortos anualmente na África, muitos deles por causa do marfim, que é um artigo valioso no extremo oriente. Mas grande parte é abatida em caças esportivas, como aquela que flagrou o então rei da Espanha, Juan Carlos, fotografado em 2012, espingarda em punho e um grande mamífero morto ao fundo. Também foi execrado publicamente e nunca mais recuperou a sua imagem.
Pois se não é para servir de alimento, por que matar, se é possível simplesmente ver, presenciar filmar e fotografar, atividades também tão rentáveis? Só os boçais não se interessam pelo extermínio dos animais e acham que o mundo vive sem eles. O tempo e o coro dos indignados tem mostrado que eles estão errados e na contramão da história.