O Julgamento e a Paixão de Jesus IV.

Embora o Dr Hain Cohn na obra “O Julgamento de Jesus, o Nazareno” afirme a exaustão que Jesus não fora julgado pelos judeus, mas pelos romanos, isto não se depreende, até agora, nos seus argumentos elencados.

 

Na verdade, o julgamento de Jesus foi quase sumário. E nos julgamentos sumários as regras pesam menos que as motivações. Havia uma verdadeira razão de estado para se decretar a morte de Jesus. Ele se tornara particularmente perigoso para o estabilishment judaico, vivendo, àquela época, desprestígio como nação invadida, afinal Roma anulara-lhe todo o poder. Aceitava-lhe apenas que professassem seus costumes, tradições e ritos. Tudo considerado desprezível, afinal os judeus eram para Roma uma etnia menor, uma terra árida de víboras e chacais, um povo atrasado e cheio de superstições.

 

Afeitos à força, os romanos, naquele tempo, ainda não haviam evoluído culturalmente a ponto de absorver a cultura helenística. Isto só aconteceria com Trajano, Adriano e Marco Aurélio, ou seja, um século depois. No tempo de Jesus, ainda se vivia sob o império de Tibério, homem perverso e sanguinário.

 

Sobre o tratamento dado aos judeus invadidos, leia-se Suetônio (69-141 d.C.) em “A Vida dos Doze Césares”: Tibério “proibiu a celebração de cerimônias estrangeiras, os ritos egípcios e judaicos obrigando os adeptos destas superstições a atirarem ao fogo as suas vestes religiosas com todos os seus apetrechos. Sob o pretexto de serviço militar, distribuía a juventude judaica pelas províncias de clima causticante. Exilou da Cidade o resto da nação israelita e os que praticavam o culto semelhante, sob pena de servidão perpétua, em caso de desobediência”.

 

Seu sucessor, Calígula,  teria a suprema ousadia de mandar erigir a própria estátua para ser adorada no templo judeu, não acontecendo a ereção, porque antes morreu assassinado, e o projeto foi esquecido. Uma providência salutar, adiando por mais algumas décadas a revolta judaica, que esmagada por Tito em 70 d.C., trouxe a destruição de Jerusalém, a Diáspora dos judeus pelo mundo afora, e o fim do estado de Israel, só ressurgido, ainda agora, em 1948.

 

Este exemplo claro do apreço de Roma com a Judéia justifica, quem o sabe, ter o Sinédrio se reunido durante a noite na casa do sumo sacerdote. Se o Sinédrio ainda não estava fora da lei, estava quase isso.

 

Assim, é plenamente compreensível o ódio dos sacerdotes a Jesus. Se não bastava o inimigo maior, Roma, um inimigo impossível de combater, surgira agora Jesus e sua pregação desmoralizando os fariseus, pondo uma nova lei no lugar da lei dos anciãos. Era uma suprema heresia. E não há crime pior que pecar contra preceitos religiosos, mesmo agora, nos  modernos tempos laicos ocidentais. É muito perigoso pecar contra Deus. Não porque Deus julgue com severidade. Os homens é que julgam severamente em seu nome. Em todos os tempos, inclusive agora, se aparecer um qualquer motivo.

 

E porque havia motivos para o processo, Jesus é levado à casa de Anás para a constituição da prova.

 

Segundo o Dr. Cohn, pelo Direito Judeu “nenhum acusado podia ser condenado à morte com base em seu próprio testemunho ou confissão”. Era preciso que “pelo menos duas testemunhas válidas declarassem ter visto cometer o ato”. Não se condena um acusado “a menos que duas testemunhas válidas declarem que o preveniram previamente para que não cometesse o ato impugnado”. Quanto ao delito específico de blasfêmia, não há crime ”desde que o acusado não profira explicitamente na presença de testemunhas o nome expresso de Deus”. Tudo de acordo com um código que vigia para uns a partir de 30 d. C. e para outros só depois de 150 d. C.

 

Ora, se as testemunhas se revelaram ineptas para configurar o crime denunciado, o diálogo mantido entre o Sumo Sacerdote e Jesus configura a prova obtida.

 

Em Marcos 14, 62-65 o ”Sumo Sacerdote pergunta: ‘És tu o Messias, o Filho de Deus Bendito?’ Jesus respondeu ‘Eu sou. E vereis o Filho do Homem sentado à direita do Poderoso e vindo com as nuvens do céu’. O Sumo Sacerdote, então, rasgando suas túnicas, disse: ‘Que necessidade temos ainda de testemunhas? Ouvistes a blasfêmia. Que vos parece?’ E todos julgaram réu de morte”.

 

Em Mateus 26, 63-66 o mesmo relato toma a forma: “E o Sumo Sacerdote lhe disse: ‘Eu te conjuro pelo Deus Vivo, se tu és o Cristo, o Filho de Deus?” Jesus respondeu: ‘Tu o disseste. Aliás, eu vos digo que, de ora em diante, vereis o Filho do Homem sentado à direita do Poder e vindo sobre as nuvens do céu’. O Sumo Sacerdote então rasgou suas vestes, dizendo: ‘Blasfemou! Que necessidade temos ainda de testemunhas? Vede: vós ouvistes neste instante a blasfêmia. Que pensais?’ Eles responderam: É réu de morte.”“.

 

Em Lucas 22, 67-71 o diálogo diante do Sinédrio toma a forma: “Se tu és o Cristo, dize-nos!” Ele respondeu: “Se eu vos disser, não acreditareis, e se eu vos interrogar, não respondereis. Mas, doravante, o Filho de Deus estará sentado à direita do Poder de Deus!” Todos então disseram: “És, portanto, o Filho de Deus?” Ele lhes declarou: “Vós o dizeis: eu sou!” Replicaram: “Que necessidade temos ainda de testemunho? Nós o ouvimos de sua própria boca!”

 

Sobre estes relatos o Dr Cohn questiona o fato de somente o Sumo Sacerdote ter rasgado as vestes. Todos os sacerdotes deveriam tê-las rasgado também, para ser configurada a blasfêmia. Por outro lado, denuncia nos textos uma preocupação de enquadrá-los nas profecias de Daniel, Jeremias, nos Salmos e até no livro do Êxodo.

 

Neste campo inverte o relato, tentando negar todos os fatos. Segundo ele, as profecias não se realizavam com Jesus. Os Evangelhos é que ao anexar livros dos profetas conduzia o relato para um diálogo profético nunca pronunciado por Jesus e seus julgadores.

 

Ora, um argumento desta natureza, se aceito, identifica os Evangelhos como um relato fraudulento. Se a meta do Dr Cohn era provar a não existência do julgamento judeu de Jesus, ao insinuar os Evangelhos como fraude, o seu argumento se revela muito mais potente, embora não explicite tal força. Segundo tal raciocínio, tudo é falso; não houve julgamento, não houve interrogatório, não houve diálogo ofensivo, Jesus não foi esbofeteado, o Sumo Sacerdote não rasgou as vestes, nem houve blasfêmias. A única verdade que aceita é Jesus, se existiu, ser um homem perigoso para Roma. Como, porém, explicar a sua prisão pelos romanos para ser entregue aos judeus? Em fim. Se tudo é mentira, se o Evangelho é falso, será que houve alguma coisa? Será que houve Cruz? Será que houve Jesus?

 

Seria muito fácil pensar assim. Apagar-se-ia tudo, inclusive o crime se este aconteceu. O problema é que as grandes injustiças, os gritantes processos discricionários, os clamorosos erros judiciários não desaparecem tão facilmente com uma improvável denúncia de fraude. Daí a ferida permanecer aberta, e a hemorragia escorrer toda vez que o assunto é desprezado, repelindo os que teimam forçar o esquecimento.

 

A pregação de Jesus atraíra o ódio dos judeus e ainda os incomoda. Isto é indiscutível. Tão irrefutável era este ódio, que o Sinédrio conseguira a prova necessária para a condenação a morte.

 

Felizmente para os Judeus que querem se eximir de culpas, Roma não lhes permitia o direito de espada; a prerrogativa de matar. Se pudessem executar os seus condenados, o matariam agora Jesus por lapidação ou apedrejamento, afinal fizeram assim com Estevão, tempos depois. Afinal, era de sua tradição matar seus condenados por apedrejamento, enforcamento ou ainda por colgação, um tipo de execução em que o réu era pendurado até morrer sufocado.

 

Felizmente para os judeus no tempo de Jesus, a pena de morte só era dada pelo romano invasor. E assim poderão dizer, para sempre, que nenhuma culpa tiveram do desfecho. É este o objetivo do Dr Cohn no seu livro: inculpar os Judeus. Se Jesus existiu e se foi condenado a morte na cruz por Roma; tudo aconteceu sem qualquer dolo dos judeus.

 

Mas a coisa não foi bem assim. Jesus tinha sido já condenado pelos Judeus. Como isto nada valia num país ocupado por Roma, era preciso receber agora o endosso romano para que fossem punidas as suas blasfêmias. Seria necessário acusa-lo perante o tribunal do invasor

 

Assim, depois de passar toda a noite da quinta-feira sem pregar olhos, passeando do Monte das Oliveiras para a casa de Anás, e depois para a de Caifás, sempre surrado, esbofeteado e cuspido, agora Jesus, o Galileu, é levado a autoridade romana para julgamento final.

 

Aí também o Dr. Cohn excluirá qualquer culpa judaica. Um assunto a ser discutido no Pretório. Um tema para outro dia.

 

Quarta-feira Santa.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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