O LIVRO DAS ESTÓRIAS DE TRANCOSO

Gonçalo Fernandes Trancoso viveu, em 1569, uma triste experiência de perder a mulher, dois filhos e um neto, vitimados pela peste que dizimou grande parte da população portuguesa residente em Lisboa. Ele próprio conta à Rainha, Dona Catarina, viúva do Rei Dom João III, sobre o seu martírio, bem como sua adesão ao mundo da imaginação, redigindo contos de aventura e estórias de proveito e exemplo, para os quais pede mercê, visando publicar um livro, em duas partes, justificando que “nenhum bem é perfeito, se não é comunicado.” Para Trancoso seu livro, dando gosto aos leitores, substituiria as lições. A primeira parte do livro, composta de 20 contos, parece ter circulado antes de 1575, quando saiu a primeira edição. É que os privilégios começam a ser dados em 1571, indicando que as partes do livro estavam prontas, as três, embora fossem editadas em volumes autônomos, até a reunião feita em 1596, provavelmente a primeira edição póstuma, reproduzida em 1624, edição tomada pelos estudiosos como de referência. A edição de 1575, feita em Lisboa pelo livreiro Antonio Gonçalvez, permaneceu desconhecida, até ser descoberta entre os livros doados pelo historiador e diplomata brasileiro Oliveira Lima, em 1928, à Biblioteca da Universidade Católica da América, nos Estados Unidos. Oliveira Lima deve ter adquirido o volume dos Contos e Histórias de Proveito e Exemplo, edição de 1575, da Livraria da Condessa de Azambuja, em 1910, quando estava em Lisboa para a abertura do Curso de Estudos Brasileiros da Faculdade de Letras, ocasião em que houve um grande leilão de livros. A edição foi tão ignorada que Menendes Pelayo duvidou da sua existência e João Palma-Ferreira utilizou a edição de 1624 para proceder a reedição da obra (Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1974). Já em 1982 o mesmo organizador Palma-Ferreira preparou, para a Biblioteca Nacional de Lisboa, a edição fac-similada da primeira edição. A edição de 1575 contém duas partes, a primeira com 20 contos e a segunda com 11 contos. Na edição de 1624, no entanto, a primeira parte reúne 19 contos e a segunda parte 9. Da primeira parte o conto que falta é o 11º, que tem como título : Que nos mostra como os pobres com pouca coisa se alegram. Da segunda parte estão fora da edição de 1624 os contos VIIº – Que nos contentemos com o que alcançamos e que perseverando em serviço de Deus se ganha o reino, e Xº – Que nenhum arme traição contra o Rei, ainda que seja doutro reino. O mérito da edição de 1624 é o de incorporar os 10 contos da terceira parte. São, então, 41 contos, ao todo: 20 da primeira parte, 11 da Segunda, 10 da terceira. É preciso fazer uma nova edição, com todos os contos, ampliando e completando a edição inicial e corrigindo a edição de 1624. Para Portugal e para o Brasil o livro de Trancoso é essencial, com suas sentenças, seus provérbios, refletindo mais do que um estado de espírito pessoal, uma época, com seus costumes, controles, e moral vigente. O livro está recheado de ditos como estes: Antes que cases olha o que fazes; A moça virtuosa Deus a esposa; Não te rias de quem passa; Quem mal fala, mal ouve; Os que zombam dos feitos alheios, dão ocasião que lhes descubram os seus; Sempre é mau ser zombado, na barca pior; Dar o seu a seu dono; Olhe cada um para si; O que Deus permite que seja, ninguém o pode estorvar; A mulher honrada sempre deve ser calada; O bem ganhado se perde, mas o mal ele e seu dono; O nécio calado por sábio é contado; Tudo o que Deus faz é por melhor. Há, no livro, uma bela gloza, feita com o mote “Por tirar do cativeiro/ Quem me cativou a mi”: Na Lusitânia nasci Ora vivo forasteiro Por tirar do cativeiro Quem me cativou a mi. E continua: “Eu sou quem na Berberia/Comprei a Garça Real/Trouxe-a livre a Portugal/E perdi minha alegria/E resultou-me daqui/tormento grave, excessivo,/Porque tirei de cativo/Quem me cativou a mi. ;Desci a tanta baixeza/Porque pus meu coração/Na suma da perfeição/Que tem estado a alteza/Perdi lembrança de mi/Deixei de ser cavaleiro/Por tirar de cativeiro/Quem me cativou a mi.” Um dos contos da primeira parte do livro é, na verdade, um ABC, escrito para uma mulher analfabeta, de mais de 20 anos. Para Trancoso a mulher deveria antes rezar a Saudação Angélica e o Padre Nosso para aprender a ler, e que seu ABC era para ser aprendido de cor e sabido, pois ele ensinaria mais que o necessário e que, ao incorporar a sua leitura saberá “mais letras” que todos os filósofos. Eis o teor do ABC, contido na carta datada de Lisboa, a 3 de abril de 1570: A, quer dizer que seja Amiga de sua casa; B, Bem quista na vizinhança; C, Caridosa com os pobres; D, Devota da Virgem; E, Entendida em seu ofício; o F, Firme na Fé; o G, Guardosa de sua fazenda; o H, Humilde a seu marido; o I, Inimiga de mexericos; o L, Leal; o M, Mansa; o N, Nobre, o O, Onesta; o P, Prudente; o Q, Quieta; o R, Regrada, o S, Sisuda; o T, Trabalhadeira; o V, Virtuosa; o X, Xpaã (Cristã) e o Z, Zolosa da honra. Pelos provérbios e pelo ABC se tem uma idéia dos conceitos e regras dominantes no século do descobrimento do Brasil e dos primeiros passos da ocupação da terra, colonização, e outras providências que representaram a expansão marítima dos portugueses. O livro de Trancoso não é obra de recolha, original e popular. É uma obra que mistura o dizer comum, com a criação intelectual que circulava em Portugal, procedente principalmente da Itália e da França. E talvez mesmo pela sua riqueza de exemplos, foi editado seis vezes durante o período da dominação espanhola, (1585, 1589, 1596, 1608, 1624, e 1633) caindo, mais tarde, no esquecimento, sem que seu autor perdesse o nome. Ao contrário, Trancoso passou a ser o patrono das coleções de contos populares. Ainda hoje, no meio do povo, para se ouvir uma narrativa universal, guardada no interior do Brasil, basta pedir uma estória de Trancoso. Permitida a reprodução desde que citada a fonte “Pesquise – Pesquisa de Sergipe / InfoNet”

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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