Carlos Ayres Britto é muito vaidoso? Na primeira entrevista de Lula após as denúncias de The Intercept Brasil, concedida a um canal aberto de televisão, a TVT, e conduzida pelos jornalistas Juca Kfouri e José Trajano, o ex-presidente disse que foi alertado por Marcelo Déda e José Eduardo Dutra sobre a vaidade daquele que viria a ser o primeiro ministro do Supremo indicado pela esquerda.
“Fui alertado depois pelo finado Zé Eduardo e pelo finado Marcelo Déda: tome muito cuidado porque ele é muito vaidoso. Ele gosta muito de si mesmo. Ele, se escrever um livro, o título será ‘Eu me amo’. Eu não levei muito em conta e indiquei”, disse o ex-presidente Lula, reconhecendo que Ayres Britto estava de fato preparado para ser ministro.
Conduzida por dois refinados profissionais, essa foi a melhor entrevista de Lula concedida até agora na sede da Polícia Federal em Curitiba, onde está preso há um ano. Mas entre outras surpresas, essa fala de Lula sobre Ayres Britto provocou certo estranhamento e até distorções.
João Fontes, que era deputado federal pelo PT em 2003 — por divergências com o presidente Lula, ele foi expulso do partido em dezembro daquele ano juntamente com a senadora Heloísa Helena (AL) e com os deputados federais Luciana Genro e João Batista, o “Babá” (PA) — afirma que “Déda e Zé Eduardo não queriam Carlos Britto ministro do STF”. E exclamou: “Acompanhei isso de muito perto. O povo nunca sabe dos bastidores da política!”
João Fontes é bem informado e deve conhecer detalhes de negociações políticas que a maioria dos mortais desconhece, mas é o próprio Carlos Britto quem o desmente.
Há um registro histórico importante do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, um depoimento concedido no dia 27 de fevereiro de 2014 a pesquisadores do Direito da FGV: “História Oral do Supremo (1988-2013)”, volume 19, Carlos Ayres Britto – Organizadores: Fernando de Castro Fontainha, Rafael Mafei Rabelo Queiroz e Fábio Ferraz de Almeida – Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas, 2017. O que vai a seguir está contido nas páginas 81 a 91.
Como pelo menos três instâncias se fazem ouvir no processo de indicação e, afinal, de nomeação de um ministro do Supremo, ele Carlos Ayres Britto lembra: “A academia de São Paulo bancou minha candidatura. Mas eu tive adesões de outros estados, com expoentes tipo Paulo Bonavides, só para citar dois nomes, e Calmon de Passos, da Bahia. Pessoas de grande referência teórica se manifestaram. Então, o lado acadêmico meu estava muito bom”.
Britto já contava então com um forte apoio institucional, da OAB, universidades e institutos científicos. “Oito ex-presidentes da OAB se deslocaram fisicamente da sede da OAB para o Ministério da Justiça, para conversar com Márcio Thomaz Bastos, pedindo minha nomeação, para você ter uma ideia, Approbato, Marcello Lavenère, Ernando Uchôa… (…) Celso Bastos mesmo, como presidente do IBDC, mandou ofício para Lula; Michel Temer, como presidente do PMDB, mas um teórico do direito, mandou uma carta para Lula, que foi lida na Comissão de Constituição e Justiça por Aloízio Mercadante. Então, tive muito apoio. Mas faltava o apoio político propriamente dito, e eu tive de duas figuras centrais: Márcio Thomaz Bastos me apoiou bem, mas bem, era o ministro da Justiça, e Marcelo Déda.”
O entrevistado pergunta: Marcelo Déda, que era prefeito de Aracaju? Britto prossegue: “É, Marcelo Déda. Ele uma vez ligou para mim… Um homem honrado. A morte dele foi muito sentida lá em Sergipe por todos nós. Eu era muito amigo dele e professor dele. Bem, ele ligou para mim e disse: ‘Britto, eu estou em Brasília, e a sua candidatura é para valer, não é algo evanescente, não. Agora, está faltando uma coisa, companheiro’. Eu disse: ‘O que está faltando, Déda?’. Ele disse: ‘O apoio político, o lado político da coisa’. Eu digo: ‘Eu sei, Marcelo Déda. Eu estava deixando isso… Eu precisava primeiro do lado acadêmico e do lado institucional. E o apoio político é você quem vai me dar’. Ele aí disse: ‘Não tenha dúvida. Você me entrega a coordenação política do seu projeto?’. Eu digo: ‘Mas é claro! Fica a seu cargo. O lado político, você é quem vai conduzir’. E assim ele fez. Com toda a fidelidade, com todo o empenho, com toda a lealdade, se encarregou de conversar com as instâncias políticas – certamente, com senadores e com deputados federais e com Lula, é evidente, com o presidente Lula –, e abriu para mim os caminhos políticos.”
Britto recorda que tudo começou em novembro de 2002, com um telefonema de Celso Antônio Bandeira de Mello, informando que tinha lançado o nome dele em São Paulo a um grupo de amigos e a receptividade foi muito boa. E que o próprio Celso não se candidatava porque já tinha 65 anos. Ele ainda estava meio incrédulo. “Mas a partir do momento em que ele (Celso) esteve pessoalmente com o Lula, na companhia de Fábio (Konder Comparato), e dizendo que a conversa foi maravilhosa, foi muito boa, Lula foi muito receptivo…”
Após um telefonema de Déda, ele foi se encontrar com o ministro Márcio Thomaz Bastos e, posteriormente, com Lula. “Aí Lula… É claro, me conhecia… ‘Oi, Britto!’, aquele abraço e tal. Aí Lula disse, pela primeira vez: ‘Olha, seu nome bombou aqui!’, qualquer coisa assim. Lula é informal, não é? Se não disse bombou, disse algo parecido. ‘Seu nome bombou aqui, rapaz! É tanto pedido! Se prepare, viu? Eu vou nomeá-lo. Mas amanhã eu vou a Aracaju e quero levá-lo comigo’ – um congresso de prefeitos, um Seminário Nacional de Prefeitos”.
Lula acabou anunciando o nome dele em Aracaju, apesar de uma resistência inicial porque também indicaria no mesmo instante César Peluso e Joaquim Barbosa. “O povo de Aracaju gosta muito de mim, modéstia à parte. E Marcelo Déda também. Mas o clima já estava incontrolável”.
Na fase de preparação para a sabatina no Senado ele contou com um apoio surpreendente, revelado na visita ao presidente da Comissão de Constituição e Justiça, Edison Lobão, na presença do ex-presidente José Sarney: “Fui muito bem recebido lá no gabinete do Edison. Mas quase todos disseram: ‘Olha, o ministro (Nelson) Jobim falou bem a seu respeito, e o presidente da Petrobras, José Eduardo Dutra’. O Jobim falou com muitos senadores. Mas alguns senadores me disseram: “E o José Eduardo Dutra. Ele falou muito bem a seu respeito, saiu de gabinete em gabinete”. Aí eu pego o telefone e ligo para José Eduardo: ‘José Eduardo, você visita cada um dos senadores, falando bem a meu respeito etc., e não me diz nada?’. Olha, que bonito da parte de José Eduardo, não é? Não me disse nada, para receber um muito obrigado.”
Essa é a história. Carlos Britto garante que Lula nunca pediu nada a ele, mas o ex-presidente da República deve ter guardado alguma mágoa por algo que fez quando foi presidente do STF, afirmando isso agora na entrevista à TVT, certamente considerando que o fez por vaidade. Mas o certo é que Déda, principalmente, e Zé Eduardo foram fundamentais para sua indicação ao Supremo.