O Manto e o Discurso

Dois sergipanos, diferentes quanto a formação e o trabalho profissional, viventes de épocas distintas, se tornaram próximos pelas opções que fizeram: o primeiro confeccionando um manto, para vestir no seu encontro com Deus, o segundo elaborando um Discurso, tratando da paz,  para ser recitado perante os líderes do mundo. Artur Bispo do Rosário, nascido em Japaratuba,  em 1909, foi marinheiro e singrou os mares antes de parar no Hospital psiquiátrico Juliano Moreira, onde desenvolveu seu potencial artístico, exteriorizando texturas, com as quais perambulava pelas ruas do Rio de Janeiro, nos tempos de liberdade clínica. As artes de Bispo do Rosário eram estandartes, talvez evocando as danças e folguedos da sua terra, com letras em alto relevo, fixando sentenças, dizeres comuns, ou frases aparentemente desfocadas da realidade. Bispo do Rosário fez, com todo a perfeição, um manto com o qual pretendia chegar à presença de Deus, no dia do juízo, para prestar suas contas.

 

 

Justiniano de Melo e Silva, natural de Laranjeiras, nasceu em 1853, percorreu as salas da Faculdade de Direito do Recife, foi professor de Inglês do Ateneu, falando na sua instalação, em 1871, seguindo depois para Córdova, na Argentina, para fazer doutorado. Ao voltar para o Brasil, foi levado para o Paraná, como Secretário da Província, dentro da itinerância do Império. No Paraná exerceu outras funções, dirigindo a saúde e a instrução pública, sendo deputado, enquanto mantinha uma atividade intelectual de poeta, vinculando-se ao Simbolismo paranaense, e de historiador, sendo autor do emblemático Nova luz sobre o passado, livro editado em 1906, graças a iniciativa de Fausto Cardoso, seu primo, seu admirador, então deputado federal. O livro, que tinha o subtítulo de A queda dos mistérios humanos, provocou surpresa e admiração, e dele se conhece apenas o primeiro volume. O segundo, em provas de revisão, está sob a guarda do seu bisneto Roberto Requião de Melo e Silva, pela terceira vez governador do Estado do Paraná.

 

 

Artur Bispo do Rosário morreu em 1989, aos 80 anos, e seu manto, como aliás toda a sua obra, com a qual desfilava, tendo o corpo como o suporte de suas mensagens, tem sido considerada de grande valor estético, atraindo platéias, em várias partes do mundo. Sua loucura e suas artes são temas recorrentes de ensaios, que dimensionam o Bispo do Rosário com um grande nome da arte universal, contextualizada numa vida difícil, marcada pela trágica circunstância de sua origem negra e pobre, numa terra onde, anos antes de seu nascimento, a população escrava era maior do que a população livre. Japaratuba, há seis anos, evoca seu filho, com um festival que mistura a tradição folclórica, com bandas e artistas da mídia, nos dias que precedem a Festa de Santos Reis, com a coroação dos reis negros (antes Reis de Congo), a guerra das Cabacinhas (antes Limão de Cheiro), o cortejo dos grupos, em homenagem ao reino anual que a festa promove. As cores fortes do manto de Bispo do Rosário tem origem nas festas populares, como uma identidade exposta com o devocionário japaratubense, fonte possível de suas criações artísticas. A transformação de negros escravos em reis parece ter a semelhança com a afirmação feita, muitas vezes, por Bispo do Rosário, de que ele era Jesus, e que com seus mantos de apresentação, subiria aos céus, como dizia: “Quando eu subir, os céus se abrirão e vai recomeçar a contagem do mundo. Vou nessa nave (a cama), com esse manto e essas miniaturas que representam a existência. Vou me apresentar”

 

Justiniano de Melo e Silva morreu velho, em 1940, em Colatina, no Espírito Santo, em busca da pedra filosofal,  deixando também seu Discurso, com seus familiares, sem ter tido a oportunidade de pronunciá-lo, para espantar as discórdias, acabar com as guerras, construir a paz. Neste final de ano, o Governo do Estado decretou o Tombamento da casa grande do Engenho São Félix, onde Justiniano de Melo e Silva cabriolou na sua infância, sob o cheiro forte da cana moída, do melaço, do açúcar, e de todos os cheiros que os ventos tangiam pela zona do Cotinguiba.

Nem Deus, nem os potentados do mundo, viram as criações dos dois sergipanos, unidos pela genialidade nem sempre compreendida. Suas obras, contudo, resistem e provocam as mais estranhas sensações.

 

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
Comentários

Nós usamos cookies para melhorar a sua experiência em nosso portal. Ao clicar em concordar, você estará de acordo com o uso conforme descrito em nossa Política de Privacidade. Concordar Leia mais