O marco inicial da vida

O Supremo Tribunal Federal iniciará, na tarde de hoje, um julgamento histórico. Trata-se da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3510, na qual o Procurador-Geral da República pede que seja declarada a inconstitucionalidade do art. 5º e seus parágrafos da Lei nº 11.105/2005[1] – conhecida como “Lei da Biossegurança” – que autorizam, para fins terapêuticos e de pesquisa científica, a utilização de células-tronco extraídas de embriões inviáveis para o processo de fertilização in vitro ou congeladas há mais de três anos.

Nessa ação, o Procurador-Geral da República sustenta que, ao autorizar a utilização da célula-tronco embrionária – e, assim, autorizar a destruição do embrião humano naquele caso – a “Lei da Biossegurança” viola o direito fundamental à vida assegurado na Constituição Federal.

O caráter histórico desse julgamento é tão significativo que levou o Ministro do STF Celso de Mello a declarar que “Esse é o processo mais importante em toda a história do tribunal, porque envolve o direito à vida. Não cometo nenhum exagero ao afirmar isso”[2].

Em 20 de abril do ano passado, por determinação do Ministro Carlos Ayres Britto – o relator da ação – foi realizada uma audiência pública (a primeira da história do STF), com a finalidade de ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade científica nessa área do conhecimento humano e reunir subsídios técnicos para um julgamento mais justo e legitimado da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3510 (com base na Lei nº 9.868/99, Art. 9º, § 1º). Audiência pública que, por sinal, atingiu plenamente os seus propósitos. Foram ouvidos 22 (vinte e dois) especialistas, divididos em dois blocos (um favorável e outro contrário à utilização das células-tronco). De acordo com o Ministro Carlos Ayres Britto, “a audiência foi um exercício da democracia direta, com a possibilidade do segmento organizado contribuir para a formatação do julgamento que repercutirá na vida da população”.

                   E como repercutirá!

Com efeito, a Constituição assegura expressamente, como direito fundamental, a inviolabilidade da vida (art. 5º, caput). Todavia, não definiu qual o seu marco inicial.

Quando começa a vida humana? Será com a fecundação (ainda que mediante fertilização in vitro) ou somente a partir do desenvolvimento, no feto, das primeiras células nervosas?[3]

Mais ainda: existe vida humana no embrião inviável para o implante ou congelado em uma cápsula há mais de três anos, descartado pelos próprios genitores? Fora do ambiente natural adequado para o seu desenvolvimento, pode-se falar do embrião como etapa da vida humana?

Essas perplexidades ainda persistem no próprio campo científico-biológico, como a audiência pública do dia 20 de abril bem revelou. Perplexidades que se transportam para o campo jurídico.

Do ponto de vista dos lados que têm se apresentado publicamente nessa discussão, cuida-se de oposição entre religião e ciência. A primeira, a condenar qualquer forma de manipulação da vida humana em qualquer de seus estágios, aí considerado o embrião. A segunda, a sustentar a imprestabilidade do embrião congelado há mais de três anos para dar origem à vida, ao mesmo tempo em que prestável à pesquisa científica de suas células-tronco, capaz de fornecer à humanidade curas de doenças graves que até hoje não encontram saída por outros meios de pesquisa disponíveis.

Assim é, inclusive, como a questão tem sido posta na grande imprensa nacional, com ênfase para as pressões religiosas envolvidas no julgamento, fé religiosa dos próprios Ministros julgadores e até mesmo para símbolos presentes na Suprema Corte, a exemplo do enorme crucifixo que a sala do Plenário ostenta.[4]

Todavia, deve ser ressaltado que, embora o Procurador-Geral da República na época da propositura da ação (Cláudio Fonteles) não negue a sua fé religiosa, a sua postulação limita-se ao campo jurídico. Recorrendo aos postulados constitucionais da dignidade da pessoa humana (inciso III do Art. 1º da CF/88) e da inviolabilidade da vida (Art. 5º, caput), sustenta que o embrião, em qualquer de seus estágios, é etapa inafastável do ciclo existencial humano, que a ordem jurídica constitucional prevê intrinsecamente inviolável.

De outro lado, e em defesa da constitucionalidade dos dispositivos legais questionados, sustenta-se que “um embrião produzido em laboratório, sem condições para implantação em um útero de uma mulher, ou, nos termos da lei, um embrião inviável, que seria descartável, não é uma pessoa humana”, mas sim um “conjunto de células” e não “pessoas dotadas de direitos”[5].

Penso que a questão jurídica deveria ser equacionada sob outra perspectiva. Como disse no início, a Constituição não estabeleceu com precisão o marco inicial da vida humana. Poderia tê-lo feito, mas não o fez. A pergunta deveria ser, então, a seguinte: pode o legislador infraconstitucional democrático fazê-lo, dentro de limites razoáveis?[6] Assim como já o fez quando estabeleceu o marco final da vida humana (para fins de autorização da doação de órgãos e tecidos) como sendo o fim da atividade cerebral (morte encefálica)[7], ainda que também haja discussões científico-biológicas quanto a esse ponto?

Contudo, creio que a Suprema Corte não enfrentará a matéria das células-tronco sob esse ângulo. Seria precipitar um debate que, ao que tudo indica, está reservado para outros julgamentos. Afinal, se a Corte decidir que o legislador democrático pode, sim, estabelecer, dentro da razoabilidade, algum marco convencional do início da vida humana (a tornar válida a escolha do desenvolvimento, no feto, das primeiras células nervosas), entra em cena a discussão sobre o aborto. Porém, é possível decidir a questão das células-tronco sem adentrar nessa outra polêmica. Aguardemos então.



[1] Art. 5o É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições:

         I – sejam embriões inviáveis; ou

        II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento.

         § 1o Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores.

        § 2o Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa.

        § 3o É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei no 9.434, de 4 de fevereiro de 1997.

 

[2] Folha de São Paulo de 02/03/2008, p. A24.

[3] De acordo com os cientistas que deram sua contribuição na audiência pública de 20 de abril, isso ocorre normalmente a partir do 14º dia a contar da fecundação.

[4] Observe-se o destaque que a Folha de São Paulo deu a esses aspectos: “Corte católica decidirá futuro da ciência – Apesar de pressões religiosas e da fé dos próprios ministros, tendência é que Supremo libere uso de embrião em pesquisa (…) Um dos Ministros lamentou que o julgamento da Lei de Biossegurança aconteça na quaresma e brincou que colegas irão ‘para o inferno’” (Folha de São Paulo de 02/03/2008, p. A24).

[5] Luis Eugenio Mello, in Folha de São Paulo de 01/03/2008, p. A3.

[6] Seria completamente desarrazoado, por exemplo, o legislador infraconstitucional estabelecer como marco inicial da vida algum momento posterior ao nascimento.

[7] Lei nº 9.434/97: Art. 3º A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina”.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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