O medo

Eu queria escrever sobre poesia essa semana. Estava lendo uns livros e pensando sobre minha relação com o mundo poético, mas uma aresta pontiaguda da vida real furou meu saco de ilusões, espalhando rimas e ritmos pelo chão. Às vezes a humanidade me surpreende, e quase sempre tenho muita dificuldade para compreender o comportamento “normal” e/ou “normatizado” dessa sociedade (pós)moderna. Aí eu empaco feito mula velha, até dissecar, estudar, problematizar esses comportamentos, embora nem sempre todo esse esforço deságue no esperado entendimento, aclaramento. E quando não entendo, simplesmente fico pelo meio do caminho, espantada de estar viva, de ser humana e de não entender lhufas sobre muitas coisas nesse mundo.

Intróito longo, porém necessário, para contar uma historinha sobre seres humanos e o medo do outro – ou outra, no caso. Na semana passada, uma moça pegou o ônibus para ir à faculdade. Andar em transporte público em qualquer capital do país no final da tarde é um ato de coragem e força para qualquer vivente, e infelizmente, ainda mais se você for uma mulher. Nessa dita sociedade (pós)moderna, o corpo feminino é quase coisa, objeto, e, como tal, defende a normatividade machista vigente, pode ser tocado, apalpado feito chuchu na feira. Os levantes em contrário podem ser – e invariavelmente serão – tomados como “histeria” feminina, coisa de “mulher mal comida”, com o perdão da má palavra.

Pois a moça do início do outro parágrafo passou por essa vexatória experiência e, como não era de se esperar, não ficou quieta: Sofia (esse é seu nome) gritou. Sofia, não a conheço, mas posso imaginar que ela percebe seu próprio corpo como algo mais que um objeto: seu corpo é a visibilização mais premente de seu estar no mundo, um aspecto importante e, por que não?, sagrado do ser. Meio e forma de expressão, espaço de ser e de criar, de interagir, de estar, e poderíamos continuar aqui a discorrer sobre toda uma filosofia do corpo e do ser. Por isso, e por muito mais coisas, Sofia gritou. Porque o corpo é dela, não pode, não deve nunca ser invadido de forma tão violenta numa sociedade que se orgulha de ser tão Iluminada e Inteligente.

O grito, o protesto desta mulher invadida e violentada, ao invés de despertar empatia das/os passageiras/os, despertou um silêncio constrangido e assustado. O medo do/a outro/a. Sofia, no caso, sendo a outra nessa história e todos os outros sendo os seres assustados e amedrontados de vê-la existindo e sendo. Ela não foi ajudada, não houve nenhum protesto em seu favor, ao invés disso, ela foi xingada, ameaçada com uma faca e literalmente atirada para fora do ônibus e chutada ainda no chão.

Sofia é uma mulher trans*. E aqui cabe um longo parêntesis, porque eu realmente empaquei nessa frase. Dizer que alguém é isso ou aquilo, parece-me uma coisa muito despropositada, como colocar um rótulo na testa do outro ou empurrá-lo para dentro de uma caixa. Identidade é uma coisa muito amorfa, creio eu, transitando entre auto-afirmação e altos muros aprisionantes. A despeito de todo esse meu devaneio, não há como contar essa história toda sem falar de identidades, porque, afinal, foi o medo do outro que se manifestou tão violentamente naquele ônibus em Aracaju, num fim de tarde.

O que eu não consegui entender ainda – e talvez nunca consiga – é porquê o medo se transforma em violência. E o que faz com que seres humanos adultos acreditem que estão autorizados a agir assim com tamanha animosidade contra outros seres humanos. E o que faz um bando de gente se omitir diante dessa animosidade. E a lista de perguntas pode ser interminável. Talvez vocês, caras/os leitoras/es, ainda não saibam, mas o país que mais mata pessoas de identidade trans* no mundo é o Brasil. Quase 40% de todos os assassinatos do mundo em 2013.

Os responsáveis por essa pesquisa, The Transgender Murder Monitoring Project, destacaram, em seu relatório, aterrorizantes casos de adolescentes brasileiras/os trans* assassinados por sua identidade de gênero. A pesquisa ressalta ainda que a transfobia também está presente em outras violências mais veladas, como a falta de acesso à saúde, educação, trabalho, uma total invisibilidade social e, até mesmo, a extrema dificuldade em trocar o nome e o gênero em seus documentos.

Entretanto, o que me deixa mais intrigada – para usar uma palavra mais “neutra” – é que o transexualismo é considerado uma doença pelos códigos médicos internacionais mais utilizados no mundo. Assim sendo, no Brasil há um “tratamento” gratuito oferecido pelo SUS chamado de “processo transexualizador”, que inclui, em seus procedimentos um “acompanhamento psicológico” por no mínimo dois anos. Aliás, uma das bandeiras do movimento trans* no Brasil hoje em dia tem sido a despatologização da identidade trans*, sem obviamente, que isso signifique mais dificuldade de acesso a atendimento.

Sim, eu fui estudar todas essas coisas antes de começar a escrever. E, não, eu não espero ensinar nada a ninguém. Aliás, tenho até muito receio de, no meio de um tema que tanto desconheço, acabar escrevendo um despropósito sem tamanho e, por isso, já peço perdão antecipadamente a qualquer pessoa de identidade trans* se não consegui contar direito essa história – e, sim, por gentileza, podem corrigir-me! Mas, ainda que sem muitas certezas, resolvi escrever, porque quando uma história captura nosso coração, é impossível não contá-la.

Nesses estudos, li diversos depoimentos tocantes, chocantes, militantes de diversos homens e mulheres trans* do Brasil e do mundo. Li muitos textos esclarecedores sobre a identidade trans* e sobre a invisibilidade social dessas pessoas – sim, pessoas! –, o que me deixou profundamente tocada. Gosto de contar as histórias que normalmente não são contadas. Talvez não os tenha entendido em sua completude, afinal, eu nunca fui empurrada de um ônibus e chutada no meio da rua, mas, parafraseando um amado amigo meu, não inventaram ainda melhor exercício de humanidade do que se colocar no lugar do outro. E esse é o exercício básico, creio eu, de quem escreve: ver o mundo através de outros olhos.

E desta vez, olho através dos olhos de uma mulher que luta. Apesar de tudo, e por causa de tudo. Outro dia, escrevi aqui sobre uma outra Sofia, minha sobrinha, que estava para chegar a este mundo. Eu dizia a ela que gostaria de entregar-lhe um mundo melhor que esse em que vivemos agora. A minha Sofia já chegou e, como previsto, falhei na minha intenção. Mas gostaria de dizer-lhe que seguimos tentando, seguimos lutando por dias e pessoas mais pacíficas, por mais amor e gentileza. E não tenho medo de parecer piegas dizendo isso. Sofia, minha pequena, espero que um dia você possa conhecer a história da sua xará e honrar e respeitar essa pessoa que tem lutado por um mundo mais amoroso. Espero que um dia você possa aprender com a ela a nunca calar-se diante de uma injustiça.

PS: Outra coisa que aprendi nesses estudos é que se usa um asterisco depois da palavra “trans” para sinalizar que esse é um termo guarda-chuva, que remete a muitas identidades de gênero diferentes, como transexual, transgênero, travesti. Utilizar o asterisco é uma forma de tentar garantir que diversas identidades sejam incluídas num determinado discurso.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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