O menino

Acorda e vai ser feliz, menino, antes que o mundo acabe, antes que o mundo morra. Há muita pressa entre as pessoas para se fazer tanta coisa, para ter, para ir, para chegar, mas deixe que lhe conte um segredo: ninguém sabe realmente para onde corre. Não precisa correr, só precisa ser feliz, agora mesmo. Apresse-se apenas por isso, o mais, é estupidez. Caminhe lentamente pela vida, e seja feliz com o que ela lhe traz – e com o que ela leva.

Por esses dias conheci um outro menino cuja espontaneidade diante da vida, alegria e, digamos, um certo desapego bagunceiro me fez lembrar de você, de mim, de nossos amigos, ex-companheiros, me fez lembrar de uma época. Meias sujas virando bombas de efeito moral em nossas guerras cheias de risadas, procurar fosse o que fosse num quarto que mais parecia campo de batalha, e, acredite, enquanto eu gritava e xingava a plenos pulmões para que toda a casa, toda a rua ouvisse, eu aprendia a exigir menos de mim, do mundo, a conviver com o Kaos. (O que mais tarde viria a me ajudar a conviver com um e outro companheiro tão ou mais bagunceiro do que você – agradeçam sempre a ele por isso, rapazes!).

Sim, você sempre soube conviver com a bagunça do quarto e da vida, com as coisas que se perdem de uma hora para outra, com os improvisos de quem sempre vive na corda bamba de esquecer a mala, a roupa, o bilhete de viagem, perde as sandálias, a carteira (três vezes ao dia!), as anotações hieroglíficas, mas nunca se perde, nunca perde o riso, nunca perde o farol que te guia. Eu, em minha mania de controle por medo de perder-me desse farol, sempre admirei encantada essa sua capacidade de seguir adiante mesmo com todas as adversidades – as maiores e as mais engraçadas.

Mesmo sendo assim, mundos tão diferentes, foi através de seus olhos que primeiro vi um mundo meu. Foi do teu lado que aprendi a caminhar sozinha e andar de bicicleta sem medo, descer as ladeiras sem freio e fugir dos cachorros com os pés encima do guidão. Pequenos aprendizados que, em algum momento, tomaram outras proporções em suas metáforas possíveis. Foi você que me ensinou a ouvir música, e me apaixonar, sentir música, entender música, amar o som e o silêncio. Foi porque você tocava que me senti capaz e desejosa de aprender a tocar algum instrumento, entrar nesse mundo, sempre caminhando ao seu lado.

Nos últimos trinta anos construímos castelos de areia e de almofadas, nadamos juntos, pedalamos, acampamos, construímos memórias melancólicas e engraçadas na praia, na roça, no fundo de casa, mundo encantado de todas as nossas histórias. Nos mudamos, fizemos novos amigos, conhecemos novos lugares, novos caminhos, bebemos até cair juntos, cantamos até ficar roucos, rimos até ficar loucos. Vivemos a alegria de amores eternos concretizados e a dor imensa dessas eternidades desfeitas (e seguir amando, e seguir tentando), partilhamos tudo isso, quase sempre em silêncio, sentindo, vivendo juntos. Porque sempre soubemos que palavras são muito desnecessárias quando se está verdadeiramente ao lado.

E quando você se despediu, indo atrás de concretizar seu sonho mais antigo e mais bonito, eu achei que ia morrer de saudades. Faltava um pedaço de mim, txai, meu melhor pedaço, apartado de mim. Não mais a companhia de todos os dias e todas as horas, não mais o quarto bagunçado, as conversas filosóficas sobre tudo e nada, as aulas de física, astronomia, medicina, não mais tocarmos juntos. Foi lá, o menino virar médico, virar gente grande. Querendo reinventar o ser médico, querendo voltar no tempo, ao tempo em que medicina se associava à astronomia, à poesia e à música para curar corpo, alma, para ver adiante.

Kíron, o centauro mitológico que ensinava aos filhos dos deuses, o sábio conhecedor tanto das ciências, da cura, quanto da poesia. Um dia, conta a mitologia grega, o centauro foi atingido por uma flecha envenenada, sendo imortal, passou o resto da eternidade com uma ferida nunca cicatrizada, dolorida. Penso eu, meu irmão, que é dessa ferida, que nunca cicatriza na alma, que nasce a poesia. É porque ela se abranda com música que é preciso buscar a melodia. Sinto muito, mas sua ferida nunca cicatrizará. E não tente escondê-la, não tente esquecê-la, é ela quem te lembra do que é o sofrimento humano.

Nessa estranha vida, nossos mundos mudaram tanto, seguimos caminhos muito desiguais, no entanto, não foi (é) motivo de nos apartarmos – que não seja nunca! Porque, afinal, foi por sermos tão diferentes assim que aprendi tanto sobre o outro, sobre a humanidade, sobre a convivência. Somos o que podemos ser e, principalmente, o que não podemos esquecer.

E me lembro para sempre do dia que ganhei de você o livro que mudaria minha vida algumas vezes. Uma história sobre uma longa viagem, sobre ir embora, sobre voltar, sobre a liberdade e o amor entre amantes, mas, principalmente, entre amigos, irmãos. Na segunda capa uma pequeníssima dedicatória que guardei no coração com todo amor: “um passo, depois outro”. E em toda minha vida, daí por diante, cada vez que penso em desistir, em não ir, em voltar, em ficar, me lembro que é só mais um passo, e depois outro. E sigo. E sou grata por te saber ao meu lado, mesmo quando discorda, mesmo quando acha absurdo, mesmo quando não vê sentindo algum.

Menino, acorda e vai ser feliz, antes que o mundo acabe, antes que o mundo morra. Segue em frente, cultiva seus sonhos, constrói uma vida com tuas mãos, realiza, mas nunca, jamais, esqueça de ser menino. Mantenha num canto aquecido desse coração aquele quarto bagunçado de nossa infância. Guarde sempre a memória dos nossos dias de alegria e descobertas e sonhos e música e literatura, é ela que nos lembra onde estão nossas (aéreas) raízes, nos lembra de onde viemos.

Feliz aniversário, meu irmão. Seja feliz. Sempre.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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