O não dito de Bruna, Francislaine e J.S.

Encontros de adolescentes costumam ser tensos, carregados de serotonina. Sua-se muito, há sorrisos nervosos, mas são normalmente alegres e terminam bem. No típico adolescente sergipano, de temperamento medianamente tímido, essa gostosa tensão está na cara. Surpreendendo o lugar-comum, o encontro entre os adolescentes Bruna e J.S. foi mais do que tenso. Foi mortalmente trágico. Não houve troca de cumprimentos curtos, palavras soltas, gestos pueris. Não houve tempo.

J.S., 17 anos, simplesmente matou Bruna assim que a viu. Provavelmente pela primeira vez. Ela tinha a mesma idade que ele, mas enxergava a vida de maneira diferente. O rosto bonito e feliz, enfeitado pelo sorriso habitualmente largo, transtornou-se em pânico quando o viu apontar um revólver para a sua cabeça. Foi certamente a última cena que os olhos amendoados de Bruna avistaram. Um garoto da sua idade, com olhar de psicopata, apontando-lhe uma arma.

Por um desses acasos da vida, Bruna cruzou o caminho de J.S. E ele precisava descarregar seus recalques e frustrações em alguém. Encontrou a ela, a pequena Francislaine, 11 anos, e também Elisandra, a dona da farmácia em Monte Alegre de Sergipe, onde tudo aconteceu.

No começo foi muito rápido: J.S. refugiou-se na farmácia, de onde trocou alguns tiros com os policiais que o perseguiam. Foi ferido de raspão no ombro direito. Elisandra e as duas meninas esconderam-se no banheiro dos fundos. Procurando um lugar por onde escapar, J.S. forçou a porta do banheiro, escorada por dentro pela dona da farmácia até que ela não pôde mais resistir.

Elisandra conta que, assim que J.S. entrou no banheiro, ele a envolveu numa gravata, afirmou que não queria matar ninguém e que elas o ajudariam a sair dali. De repente, num gesto tresloucado que ficará para sempre incompreendido, ainda apertando o seu pescoço, ele disparou contra a cabeça de Elisandra. A aliança na mão esquerda dela amorteceu o impacto da bala, que penetrou superficialmente no couro cabeludo.

Elisandra caiu fingindo-se de morta. Bruna e Francislaine começaram a gritar. Estavam em pânico. Aturdido com aquele eco nos ouvidos, J.S. ficou ainda mais possesso. Ele suspendeu a menor pelos cabelos e disparou contra a nuca dela. A bala atravessou a base do crânio e saiu pela boca, mas a frágil Francislaine não teve morte imediata. Bruna foi a terceira a ser alvejada: também recebeu um tiro na cabeça e teve morte imediata. A partir daí, tudo passou a ser muito lento. Durante mais de quatro horas, Elisandra fingia-se de morta e Francislaine esvaia-se em sangue. A menina só morreria na tarde de domingo, no Hospital João Alves Filho. O resto é o que todo o País ficou sabendo.

 

A POBREZA QUE GERA VIOLÊNCIA — O que a maioria também já sabe, mas muitos fingem não ver, é que J.S. é um produto do meio. Ainda em Nova York, onde fora avisado da tragédia de Monte Alegre, o governador Marcelo Déda preocupou-se com a notícia e ficou surpreso de saber que o “perigoso bandido” não era um fugitivo dos presídios paulistas ou cariocas, ninguém do CCV ou do Comando Vermelho, mas um delinqüente juvenil dali mesmo, de um lugarejo miserável chamado bucolicamente de Boa Vista, a 20 quilômetros da sede municipal.

Na Boa Vista, que tem esse nome porque fica num lugar elevado da caatinga, há uma casinha paupérrima, de taipa e três cômodos, onde se criaram J.S. e seus 15 irmãos. Os pais, Antônio e Maria José contaram ao repórter Antônio Garcia, do JC, que o menino sempre foi meio rebelde, pouco freqüentou a escola e nunca trabalhou, o que não deixa de ser raro nas famílias pobres do interior nordestino. O pai admite que ultimamente ele andava em más companhias (veja reportagem na página B7).

Especulou-se que J.S. integrava uma gangue que vive de pequenos assaltos pelos descampados do sertão. Dizem que na região há grupos armados que sobrevivem de roubar e matar. Não é difícil imaginar por que. A perspectiva de vida para quem nasce e cresce numa família como a de Antônio e Maria José é próxima de zero, senão completamente nula.

O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do município de Monte Alegre é de 0,568, numa escala que vai até 1. A título de comparação, o IDH de Aracaju, que não é grande coisa, é de 0,794 (nos melhores municípios o índice supera a 0,900). Os dados são do IBGE e baseiam-se no censo do ano 2000. O IDH mede a expectativa de vida, a taxa de alfabetização e o PIB per capita para saber o grau de desenvolvimento social de um lugar. Já pensou se pudesse ser medido o IDH da Boa Vista?

Mas se alguém é capaz de argumentar que não é por ser pobre que o indivíduo vai virar bandido, assassino perigoso ou psicopata, deve-se informar que a sociologia moderna associa, sim, pobreza e violência. É Márcio Pochmann, economista, professor da Unicamp e ex-secretário municipal de São Paulo, quem afirma, baseado em pesquisa: “A relação da variação do rendimento e da taxa de pobreza dos chefes de domicílios com a evolução da violência no município de São Paulo apresenta-se direta. Em geral, quando o crescimento do rendimento é significativo, a pobreza tende a diminuir, assim como a violência”. Portanto, prossegue ele, “o combate à violência requer também uma melhor distribuição de renda e, sobretudo, o combate à pobreza”. Ponto.

 

SOCIOPATA OU PSICOPATA? — Agora, o caso de J.S. pode extrapolar a condição da pobreza, ou estar associado a ela, já que ele, segundo avaliação preliminar, apresenta sinais de psicopatia. O psicólogo Odlavineg Feitosa de Lima — um herói naquele dia, pois ousou encarar o criminoso de frente, peito aberto (literalmente, pois sem camisa), até convencê-lo a se render — buscou outro termo, não menos duro, para qualificá-lo: “Ele emitia comportamentos que correspondem a um perfil de personalidade perversa. Essa pessoa não tem afeto. Posso garantir que havia um traço de comportamento típico de um sociopata, aquele indivíduo que tem conhecimento da lei, da moral, mas ele não introjeta, não absorve. Ou seja, ele não sofre com os seus atos”.

Seja como for, sociopata, psicopata ou perverso, por que não impediram um sujeito como esse de andar armado no centro de Monte Alegre?

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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