O PESADELO DA DENGUE

O mundo dos velhos, de todos os velhos, é, de modo mais ou menos intenso, o mundo da memória. Dizemos: afinal, somos aquilo que pensamos, amamos, realizamos. E eu acrescentaria: somos aquilo que lembramos. Além dos afetos que alimentamos, a nossa riqueza são os pensamentos que pensamos, as ações que cumprimos, as lembranças que conservamos e não deixamos apagar e das quais somos o único guardião. (…) No entanto, as recordações não aflorarão se não as formos procurar nos recantos mais distantes da memória. O relembrar é uma atividade mental que não exercitamos com freqüência porque é desgastante ou embaraçosa. Mas é uma atividade salutar. Na rememoração reencontramos a nós mesmos e a nossa identidade, não obstante os muitos anos transcorridos, os mil fatos vividos (Bobbio:1997)

Josafá Feitoza tem 67 anos de idade. Aposentou-se em 1995, pela Fundação Nacional de Saúde, onde atuou por 35 anos combatendo endemias em Sergipe. Na noite de 3 de dezembro de 2006, ele teve um sonho.  Estava trabalhando em um dos municípios sergipanos, não se recorda qual, mas sabia que era um dos  46 municípios endêmicos para a esquistossomose. Então alguém se aproximou dele, um senhor com idade bem avançada e, segurando em seu braço, perguntou se ele não poderia fazer mais do que estava fazendo, para acabar de vez com aquele mal. Acordou assustado no meio da madrugada e não conseguiu conciliar o sono, imaginando o que poderia ter feito a mais.

No dia seguinte, percebendo que o seu sonho seria “uma espécie de advertência celestial”, escreveu uma carta para o deputado federal José Carlos Machado, relatando o episódio e pedindo que ele liderasse um movimento no Congresso Nacional para modificar a metodologia aplicada pelos estados e municípios no combate às endemias.

De fato, o sonho de Josafá foi um presságio do que de ruim viria pela frente e a sensação de decepção experimentada por ele deve ter sido compartilhada por milhares de servidores da SESP e da SUCAM e depois Funasa – Fundação Nacional de Saúde.

Com a municipalização, aconteceu o que todos temiam, a prefeiturização. O dinheiro foi direto para as mãos de gestores despreparados e todo  o conhecimento adquirido ao longo de décadas, com vultosos investimentos na capacitação de técnicos em controle de endemias, inclusive com  recursos do Banco Mundial e do Banco Internacional  de Desenvolvimento, foram parar na lata de lixo.

O país, que estava preparado para combater as principais endemias, principalmente a esquistossomose, a doença de Chagas, a leishmaniose, a filariose, a febre amarela e a dengue, entre outras, obtendo vitórias expressivas e impressionantes, de repente teve toda a sua máquina desmontada. Retrocedemos e retrocedemos feio! E a prova está aí, com a epidemia de dengue que assola o país, que foge do controle, que assusta as pessoas, mata crianças e adultos indefesos. Os números são assustadores, nos envergonham como Nação, como cidadãos,  e que nos deixam, aos olhos do mundo, em situação embaraçosa e temerária.

Em 1958,  a OPAS – Organização Pan-americana de Saúde, confirmou a erradicação do Aedes aegypti no Brasil. Em 1967, ele reapareceu no Pará. Em 1970,  a Sucam começou a coordenar os trabalhos de controle da endemia e retomou a prática do mata-mosquito, fazendo um trabalho de domicílio em domicílio, de porta em porta.  Mesmo assim, tivemos  uma epidemia de dengue em 1986 e 1987. Em 1990,  no governo Collor, a Sucam foi extinta. Coincidência ou não, a partir daí, os casos de dengue não pararam mais de crescer. Em 1995, a Resolução número 160 do Conselho Nacional de Saúde, presidido à época pelo Ministro Adib Jatene, considerando “a gravidade da situação de densidade e distribuição do Aedes aegypti no país, o alto risco de reurbanização da febre amarela, a concreta possibilidade de ocorrência de febre hemorrágica do dengue”, entre outros considerandos, criava uma  Comissão Técnica com o objetivo de erradicar o mosquito no continente americano até o final de 1998. Ao que parece, a resolução ficou trancada na gaveta de algum burocrata.

Em 1992 tivemos uma ameaça real e imediata da propagação do “cólera morbus” em nosso Estado. O governo agiu com determinação e autoridade. Bloqueou os acessos rodoviários  e fluviais, preparou uma verdadeira operação de guerra, nenhum veículo entrava em Sergipe sem ser vistoriado e seus ocupantes interrogados, mas mesmo assim a doença “atravessou” o rio São Francisco, vindo de Piaçabuçu e chegou a Brejo Grande e a Ilha das Flores. As duas cidades foram imediatamente bloqueadas. Equipes de saúde, com profissionais capacitados previamente pelo Ministério da Saúde, inclusive com treinamentos em áreas epidêmicas fora do Brasil, como aconteceu na cidade de Iquitos, no Peru, internaram-se naquelas cidades ribeirinhas e fecharam o cerco contra a doença. Foram instalados centros de reidratação com macas e utensílios apropriados. A ação deu resultados e a  cólera não se alastrou pelo estado. Não me recordo de todos, mas nomes como os de José Hamilton Maciel, Darcy Tavares Pinto, João Augusto Figueiredo, Alvimar Moura, a enfermeira Natividade e outros abnegados participaram dessa jornada vitoriosa.

Na minha opinião, na atual epidemia de dengue, que as autoridades demoraram a admitir e em conseqüência agir, falta um comando geral único. Ninguém se entende, ações são anunciadas, mas são tão tímidas que ninguém as vê e as pessoas continuam inseguras, indefesas e desprotegidas. Os hospitais, públicos e privados, continuam sem dar conta dos casos. Os médicos trabalham exauridos e ameaçados. Por sua vez, as ações cobradas pelo Ministério Público e pela OAB têm se revelado como impraticáveis em decorrência da conjuntura que se instalou na área da saúde, com a desativação dos organismos que entendiam do assunto, com a não valorização dos recursos humanos e a política do “médico de pé-no-chão” importada de um país com uma realidade totalmente diversa da nossa.

Felizmente, a expectativa é que, em função da sazonalidade, os casos de dengue tendam a regredir, retornando à condição de endemia. Mas o estrago deixado, as vidas ceifadas, o terror instalado, a angústia vivida, essas nunca serão esquecidas. Resta agora que todos se unam para enfrentar os desafios que estão por vir, para que o sonho de Josafá Feitosa não se transforme em um grande pesadelo.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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