O Polêmico Programa “Mais Médicos” – Parte Final

Apresentaremos nesta Parte Final as conclusões a que chegamos da análise jurídica do polêmico programa “Mais Médicos”.

Continuamos a entender, como comentado na Parte I, que a forma jurídica inadequada (medida provisória) para implementação do programa, sem qualquer prévia discussão com a sociedade em geral, com a classe médica e com os demais trabalhadores da saúde, com a comunidade acadêmica e com os conselhos profissionais, contribuiu decisivamente para que fossem exaltados e radicalizados os ânimos dos que se posicionam favoravelmente e contrariamente, comprometendo a racionalidade do importante debate nacional sobre os diagnósticos e sobre eventuais alternativas e/ou aperfeiçoamentos que o programa “mais médicos” pudesse receber antes de sua imediata entrada em vigor.

Exemplo dessa radicalidade e comprometimento da racionalidade é a injustificada reação à chegada de médicos cubanos – que se integrarão ao “Projeto Mais Médicos para o Brasil” na modalidade de médicos intercambistas, contratados mediante acordo internacional direto firmado com a Organização Panamericana de Saúde (que repassará os valores ao governo cubano), como autorizado pelo Art. 17 da MP n° 621/2013 – que inclui manifestações explícitas de um anacrônico “anticomunismo” típico da guerra fria de mais de trinta anos atrás. Esse comprometimento da racionalidade da discussão tem polarizado prosaicamente as posições antagônicas, com o que se perde excelente oportunidade de discussão de aspectos positivos e negativos do que poderia ser uma proposta-base, mais abrangente inclusive, de exame das políticas públicas de saúde como um todo e oferecimento de soluções bem amadurecidas e democraticamente debatidas.

Com efeito, apesar da forma jurídica inadequada e autoritária de implementação do programa, por meio da Medida Provisória n° 621/2013 – com o que o Governo Federal joga com o fato consumado contra eventual rejeição ou tentativas de modificação no Congresso Nacional – o fato é que é possível encontrar, nela (na MP n° 621/2013), aspectos positivos, que poderiam constituir embrião de importantes redirecionamentos, desde que efetuados os necessários ajustes.

O diagnóstico da carência de médicos para atuar na atenção básica do SUS em diversas regiões do país parece ser realidade inquestionável, a merecer mesmo a adoção de políticas públicas específicas e consistentes de atração e fixação de médicos nessas áreas, de modo a assegurar a prestação eficiente da saúde pública pela via da atenção básica, essencialmente preventiva. Nesse sentido – e não havendo aí qualquer inconstitucionalidade, porque a União tem mesmo competência para legislar sobre as diretrizes e bases da educação nacional e para organizar o sistema federal de ensino, tudo conforme registramos na Parte II – parece razoável a reordenação da oferta de cursos de medicina e vagas para residência médica, priorizando regiões de saúde com menor relação de vagas e médicos por habitante e com estrutura de serviços de saúde em condições de ofertar campo de prática suficiente e de qualidade para os alunos. O mesmo se diga em relação às novas regras sobre a formação médica no Brasil –não existindo aí qualquer inconstitucionalidade, eis que também é a União que tem competência para, por meio de lei, estabelecer limitações razoáveis ao exercício de qualquer profissão, inclusive a medicina, tal como comentado na Parte III – com possibilidade de abranger dois ciclos distintos e complementares, em que o segundo ciclo corresponderá a treinamento em serviço, exclusivamente na atenção básica à saúde e em urgência e emergência no âmbito do SUS, com duração mínima de dois anos.

Já o “Projeto Mais Médicos para o Brasil” parece acertar no diagnóstico, mas errar gravemente na medida adotada, conforme assinalamos na Parte IV. Isso porque, para tentar combater emergencialmente a carência de médicos atuando na atenção básica do SUS em determinadas regiões do país, “legaliza” uma forma precarizada de relação de trabalho, sem garantia dos direitos trabalhistas essenciais, disfarçando essa medida como se se tratasse de especialização/aperfeiçoamento em ações de atenção básica do SUS, supostamente com supervisão efetiva de profissionais médicos e do docente responsável pela orientação acadêmica. E o “Projeto Mais Médicos para o Brasil” não se preocupa em enfrentar as causas da carência de médicos na atenção básica do SUS em várias partes do Brasil, nem tampouco de promover medidas efetivas destinadas à atração imediata e à fixação de médicos nas regiões onde a carência é maior, com vínculo de trabalho efetivo.

É comum e recorrente o argumento de que médicos brasileiros (dito de forma reprovavelmente generalizada) simplesmente não querem trabalhar nos rincões, mesmo com propostas de recebimentos de altíssimos salários por parte dos gestores municipais do SUS.

Não se leva em conta, muitas vezes, a extrema precarização desses vínculos, sem seleção pela via do concurso público, sem garantia de estabilidade (o que impede a independência técnica frente ao gestor), sem a garantia de uma carreira oficialmente valorizada como devem ser valorizadas todas as carreiras públicas efetivas voltadas ao atendimento de direitos fundamentais essenciais à dignidade da pessoa humana como são as carreiras médicas e das áreas de saúde em geral.

A ideia de uma carreira médica federal, ou pelo menos estadual, garantidora de vínculo estatutário efetivo, com ingresso exclusivamente mediante aprovação em concurso público e estabilidade e inamovibilidade, além de remuneração substantiva irredutível e exigência de dedicação exclusiva à atuação na medicina pública, com previsão de progressões e remoções a pedido (tudo assim como ocorre no âmbito das carreiras jurídicas da magistratura e do Ministério Público), parece ter muito mais potencialidade de resolver (e em definitivo) o problema da carência de médicos atuando na atenção básica do SUS em determinadas regiões do país. Isso porque, com a necessária independência e estrutura, terão perspectiva de, aos poucos, mediante pedidos de remoção na medida em que forem surgindo as vagas, trabalhar nos centros urbanos (o que é compreensível desejo da maioria dos profissionais de todas as áreas), sem desfalcar as regiões mais carentes, desde que haja o necessário planejamento vagas/necessidades e realização dos concursos públicos para o seu preenchimento.

Por sinal, já existe proposta de emenda à constituição nesse sentido tramitando no Congresso Nacional. E é claro que essa ideia acarreta transformações mais profundas no modelo federativo de organização do SUS, e por isso mesmo pode enfrentar maior resistência dos meios políticos, para não falar da maior dificuldade na tramitação e aprovação de qualquer emenda à constituição, devido ao seu rito legislativo constitucionalmente mais rígido e exigente de quoruns mais qualificados (3/5 ou 60%) para aprovação. O Governo Federal, todavia, optou pela via mais “fácil” e rápida da Medida Provisória, e não apresentou ainda nenhuma proposta concreta emergencial ou definitiva de atração imediata e de fixação de médicos nas regiões onde a carência é maior, contentando-se com o “Projeto Mais Médicos para o Brasil”, cuja duvidosa constitucionalidade tem tudo para ser confirmada (a inconstitucionalidade) a partir da situação fática em que eventualmente fique demonstrada a atuação meramente substitutiva de médicos de atenção básica do SUS e não um verdadeiro programa de aperfeiçoamento/especialização (tudo conforme comentado na Parte IV).

Ainda há tempo, todavia, de dissipar o comprometimento da racionalidade do debate aqui comentado e tentar retomar a discussão em termos mais consistentes, tendo sempre em vista que a garantia de prestação efetiva de atenção básica em saúde é dever fundamental do Estado Brasileiro como inerente ao atendimento do objetivo de construção de uma sociedade verdadeiramente livre, justa e solidária.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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