O Polêmico Programa “Mais Médicos” – Parte III

Continuamos a série de textos sobre o programa “Mais Médicos” – instituído pela Medida Provisória nº 621/2013 (forma jurídica inadequada, conforme comentamos na Parte I), com o objetivo de debater os aspectos jurídicos desse programa governamental.

Dentre as novidades, regras sobre a formação médica no Brasil (que só começam a ter aplicação para os ingressantes nos cursos de medicina a partir de 01 de janeiro de 2015, o que bem demonstra a inadequação da medida provisória como forma jurídica de sua imposição), que abrangerá dois ciclos distintos e complementares.

O primeiro ciclo corresponderá à observância das diretrizes curriculares nacionais, com cumprimento de carga horária mínima de sete mil e duzentas horas. O segundo ciclo corresponderá a treinamento em serviço, exclusivamente na atenção básica à saúde e em urgência e emergência no âmbito do SUS, com duração mínima de dois anos – conforme regulamentação do Conselho Nacional de Educação, homologada pelo Ministro de Estado da Educação – e garantia de percepção de bolsa custeada pelo Ministério da Saúde, sendo que esse segundo ciclo não dispensará o estudante de medicina do estágio curricular obrigatório de treinamento em serviço supervisionado, em regime de internato, desenvolvido durante o primeiro ciclo do curso e disciplinado em conformidade com as diretrizes curriculares nacionais.

Será assegurada ao estudante que tenha concluído o primeiro ciclo a permissão para o exercício profissional da medicina, válida exclusivamente para as atividades do segundo ciclo de formação. O diploma de médico, necessário ao exercício geral da profissão, somente será conferido ao estudante aprovado no segundo ciclo, que poderá ser aproveitado como uma etapa de programas de residência médica ou de outro curso de pós-graduação.

Com essa nova estrutura da formação médica, o Programa “Mais Médicos” pretende impor acréscimo substancial de horas na formação específica na atenção básica como importante estratégia para a formação generalista de profissionais com senso de responsabilidade social e compromisso de cidadania. Além disso, e combinadamente com as novas regras sobre autorização para funcionamento de novos cursos de graduação em medicina (comentadas na Parte II), pretende enfrentar o problema da escassez de médicos no país, sobretudo em regiões prioritárias para o SUS, de modo que o segundo ciclo de formação médica também ajude a atender essa demanda fundamental.

Embora já tenha sido divulgado que o Governo Federal recuou dessa inovação, o fato é que a Medida Provisória n° 621/2013 continua em vigor com essa inovação, até que eventualmente seja sancionado ou vetado projeto de conversão ou até que expire o prazo constitucional de sua eficácia, e é então o aspecto jurídico dessa polêmica inovação que aqui comentamos.

Acaso pode ser encarada como inconstitucional essa ampliação do tempo de formação médica, com a exigência do segundo ciclo, de duração obrigatória mínima de dois anos, correspondendo a treinamento em serviço, exclusivamente na atenção básica à saúde e em urgência e emergência no âmbito do SUS?

A resposta que se impõe é negativa.

Observe-se o modo como a Constituição assegura, com status de direito fundamental, a liberdade de exercício profissional:

Art. 5° (…)
(…)
XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício, ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer
(grifou-se)

Ou seja: a Constituição assegurou a liberdade de exercício profissional, no sentido de vedar peremptoriamente ao Estado (ou aos particulares) a imposição de exercício de determinado trabalho, ofício, ou profissão, contra a vontade do indivíduo.

Todavia, apesar de a norma constitucional assegurar essa livre escolha, essa não-interferência estatal, a mesma norma (e aí levando em conta o interesse público, o interesse geral da sociedade) admite que a legislação infraconstitucional imponha qualificações profissionais que devem ser atendidas por quem queira exercer determinado trabalho, ofício ou profissão. Assim, o que a Constituição expressamente admite é que a sociedade, por decisão democrática direta ou de seus representantes, aprove, por meio de lei, exigências que devem ser atendidas para o exercício de certas atividades.

O que se aponta é que essas exigências legais para o exercício de profissões não podem extravasar certos limites de razoabilidade, sob pena de esvaziar abusivamente a liberdade de exercício profissional. O Supremo Tribunal Federal já se pronunciou nos seguintes termos: “A reserva legal estabelecida pelo art. 5º, XIII, não confere ao legislador o poder de restringir o exercício da liberdade a ponto de atingir o seu próprio núcleo essencial (…) enquanto princípio expressamente consagrado na Constituição ou enquanto postulado constitucional imanente, o princípio da proteção do núcleo essencial destina-se a evitar o esvaziamento do conteúdo do direito fundamental decorrente de restrições descabidas, desmesuradas ou desproporcionais” (voto do Ministro Gilmar Mendes no RE n° 511961).

Enfim, o teste da razoabilidade e da proporcionalidade das exigências de qualificação profissional como condição para o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão tem a finalidade de evitar abusos do legislador que comprometam a própria essência da liberdade constitucionalmente assegurada. E que, detectado que as exigências legais estabelecidas para o exercício profissional não são razoáveis, impõe-se a sua declaração de inconstitucionalidade.

Nesse sentido, de acordo com registros doutrinários dos Professores Eros Grau (ex-Ministro do STF) e Geraldo Ataliba, o citado voto do Ministro Gilmar Mendes aponta que “as qualificações profissionais de que trata o art. 5º, inciso XIII, da Constituição, somente podem ser exigidas, pela lei, daquelas profissões que, de alguma maneira, podem trazer perigo de dano à coletividade ou prejuízos diretos a direitos de terceiros, sem culpa das vítimas, tais como a medicina e demais profissões ligadas à área de saúde, a engenharia, a advocacia e a magistratura, dentre outras várias” (grifou-se).

Parece fácil concluir que o exercício desregulado da medicina tem, sim, potencial de causar sérios e incomensuráveis prejuízos à coletividade e aos direitos mais essenciais de terceiros, como a vida e a saúde.

E que a União, no exercício de sua competência constitucional privativa de dispor legislativamente sobre condições para o exercício de profissões, possa legitimamente impor novas condições para o exercício da profissão de medicina, a abranger um segundo ciclo de formação nos moldes do Programa “Mais Médicos”, inclusive como política pública destinada ao melhor oferecimento da saúde à população.

O problema, portanto, não é de inconstitucionalidade dessa inovação. A lei federal tem legitimidade constitucional para efetuá-la. Todavia, ela não é obrigatória, e o debate político sério pode evidenciar eventual inadequação ou seu eventual acerto. Com a palavra os detentores de conhecimento especializado sobre pedagogia médica para argumentação mais consistente nesse igualmente polêmico aspecto do Programa “Mais Médicos”.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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