O Quadrado de Pirro

Segundo a alemã Mirna, esposa do Sr. Gorshe Grannam, comerciante alemão radicado em Maruim nos idos de 1853, um “professor só era importante para ensinar a linguagem e a base das ciências exatas, ademais eram inúteis, corrompidos, sempre a interpretarem os textos de forma pessoal, incutindo nos alunos, o pensamento reputado em seus juízos”.

Amiga dos livros, a Senhora Grannam “admirava a criatividade, o gesto, as atitudes reverentes, a música, as artes,…”

Mirna Grannam seria a personalidade feminina mais notável e destacável de “O Quadrado de Pirro”, excelente ficção de Renato Conde Garcia, não fosse logo esquecida em página e meia, talvez, por obra e trama de Cristalsanto, personagem mais reptado, por final, espécie de vilão, rufião e espadarte, uma encarnação do Diabo, ou seu corifeu embaixador.

O livro de Renato Garcia.

E aquilo que seria ensaio; o quadrado do Engenheiro Pirro no traçado de Aracaju, dá lugar a uma ficção lírica, permeando o fantástico realismo, onde o autor revela seu conhecimento dos utensílios do agir náutico, simpatias que se estendem às dissertações de lutas marciais, tendo o mote da capoeira baiana como fundo, temperado em vasto receituário de coco e dendê, e externando, a todo instante, uma densa preocupação com a preservação e conservação do meio ambiente.

Quanto ao Quadrado de Pirro, este fica no epílogo do livro, como se houvesse um despertar de sobriedade frente às armadas e às botadas de Cristalsanto.

Porque desde o princípio, o diabo, a luxúria e a cupidez assacam e atentam os personagens abaixo do equador. Desde João Afonso de Braga, que em viagem de Lisboa, trazendo seu filho Pedro, dirige-se às terras de Sergipe, em demanda do Engenho Baraúna, em Maruim, glebas sem fim adquiridas por sesmaria ou posse do mais forte.

A viagem de pai e filho fora uma espécie de autopunição pela morte sofrida de esposa e mãe, e porque desejavam desbravar terras, arregaçar mangas. Um plano estimulado pelo rico parente, Francisco Ferraz, capitalista sagaz que desejava ampliar negócios nos brasis e nunca ousara cruzar o Atlântico.

Neste tempo, 1845, a viagem ainda trazia consigo os perigos do mar desconhecido. Valia ainda o mote salgado do mar português: ‘se queres rezar, faze-te ao mar!’

Mas, se João Afonso estivera tão dolente e tristonho em sua viuvez recente, o diabo logo o incendiaria, quando em meio aos festejos do Dois de Julho, ao desembarcar em Salvador, na feira de água de Menino, perde-se nas ancas e nos seios de Jacira, “uma jabuticaba da cabeça aos pés, suculenta e sem caroço, pedindo para ser apreciada,… em fogo latente, qual carvão amontoado”.

E João Afonso que nunca vira nem comera jabuticaba, em debalde luta “frente aos maus espíritos, desde muito involucrados”, atiçados agora por uma limpa de cabeça com milone, foi conhecer o oveiro e o tempero de Jacira, como sarapatel da Bahia.

E assim, eis bem rápido o luso choroso, restando fogoso nos braços da retinta negrinha, em “peleja feroz de sentimentos, de roupas rasgadas, envolvidos num cheiro de cio, em volúpias trôpegas”, despertando satã nos “corpus alienum”.

Mas, se Jacira abençoou João Afonso no seu caminhar para Sergipe, o livro de Renato está sempre a repetir esta atração irresistível de permeação e miscigenação dos de tez diferente, contumácia sergipana, sobremodo, clareando a pele e alisando os pelos.

Há no livro de Renato um dissertar reprovador dos meios e modos da sociedade patriarcal escravocrata, uma demonstração sensível de simpatia pelos mais fracos, chegando mesmo a encarar no patronato rural de então, uma ociosidade que não combina com o gerenciar e conduzir.

Neste particular, se exceções existem, estas se resumem a João Afonso e seu filho João Pedro, que à frente de seu tempo, alforriam os escravos, tornando-se industriais usineiros e beneficiadores de algodão, com o dinheiro se reproduzindo em sucessivas obras de benemerência e caridade.

Se em João Afonso não há maldade, embora seu desejo fora, em trabalho paralelo ao banguê, criar uma forte cadeia de cassinos, tudo abençoado pelo Padre Osório, o personagem ubíquo, do começo ao fim do livro, ora santo, ora capaz de tudo, com batina, sem ela, ou levantando ela, e a batina, em João Pedro há uma vocação moura para a poligamia.

João Pedro casar-se-ia ao pé de uma braúna, com Guirske, germânica genuína, filha do casal Gronnam, e com Iara, uma africana vinda da Bahia, unidos os três em “ménage a trois” sem fim.

Neste particular, do sucesso de um relacionamento assim, pouco se conhece no desfecho do livro e do entrevero; diferente do corriqueiro e vero, ali não se vê o varão sendo banido por inteiro.

Quanto a João Afonso, o pai, de tão rico torna-se o Barão de Itaguiba, Vice-Presidente da Província que amplia fortuna em casamento com a viúva Madalena de Souza, que nas vésperas das núpcias só se alimentara de testículos de macaco, ‘oeufs de singe brouillés’, só para ficar fogosa. Regime desnecessário, afinal: “Mulher nova, guardada assim tanto tempo, sua muito por baixo. É o calor do cio”.

Ou seja, o livro de Renato é xistoso e brincalhão, uma leitura divertida, agradável, cuja seriedade permeia a ironia nos desejos e nas fraquezas dos homens, que se alegram com o riso que a vida sempre está a oferecer.

De Sergipe sua história, sua geografia e sua gente, um passeio entre fozes, por canais do Rio Real ao Piauí, deste ao Vaza Barris, e daí ao Poxim, ao Aracaju, depois batizado Sergipe, ao Cotinguiba, ao Pomonga e ao Japaratuba, sem falar do São Francisco só alcançável por mar.

O remansar de Laranjeiras, suas muitas igrejas, de Maruim, de Nossa Senhora de Boa Hora, tempo de exportação de açúcar nos saveiros de cascos chatos e quase planos.

História de Sergipe também: em outra visão; é verdade!

Uma leitura burlesca, divertida e não menos verdadeira, afinal se ali se fala do Cólera Morbus, da visita do Imperador Pedro II e da mudança da Capital para os charcos do Aracaju, omite-se personagens, traceja-se outros, romanceando a história, “como registro para a informação de Deus”, por intenção do autor.

Dos personagens, poder-se-á desconfiar que o português João Afonso Braga, o Barão de Itaguiba é inspirado no brasileiro João Gomes de Melo, o Barão do Maruim, afinal fora um dos principais responsáveis pela mudança da Capital, casara com uma viúva, e tivera uma enteada assassinada por ingestão de arsênico.

Quanto aos quitutes pré-nupciais da nubente, com ovos de saguis mexidos, o gracejo fica por conta de mais uma gota de rum de um conviva de boa língua.

No mais, respinga no Monsenhor Osório o crime do Padre Gratuliano da Silva Porto, este real, cruento e verdadeiro, retirando o coração do desafeto, ‘só para ver se dentro havia pelo’. Aspas verdadeiras, não da ficção quadrática, nem da pirreana versão de Renato Garcia, mas retiradas do processo testemunhal arrolado que de nada valeu.

Há também no Quadrado de Pirro, uma leve narração de um rapto. Estaria inspirado no roubo da Jureminha por Braz Maciel, o depois parisiense irmão de Leandro Ribeiro de Siqueira Maciel, o grande Leandro dos fins do Império e início da República?

Ademais, em meio a tantos fatos inseridos provocadamente difusos, o livro de Renato Garcia se transforma num passeio delicioso pela história de Sergipe, sobrando inclusive Pedro II, Juca Paranhos e toda corte imperial, travando guerra de cabacinha, memória do Barão de Itaguiba que as importou do Rio de Janeiro para o Cacumbi de Marimbondo, e das Aguadas de Japaratuba.

De Pedro II ainda, Renato o põe garanhão em terras de Sergipe, sobrando dúvida, “se non è vero è ben trovato”.

Enfim, o Quadrado de Pirro não é um romance. Não é também um poema, um cantar lírico como a produção literária de seu pai, o médico e amigo, Antônio Garcia Filho, de saudosa memória.

Também não é um enfadonho estudo histórico, eivado de documentos mofados e citações esmaecidas.

No dizer sempre lúcido de Luiz Antônio Barreto em apreciação primeira e por apresentação da obra, Garcia se revela um narrador onisciente, detentor do domínio das tramas, para em fino humor provocar e questionar ampla antologia de costumes, servida ao leitor sem preocupação factual e científica, obra que permanece em aberto para explicitação e ampliação.

Em não fazendo de “O Quadrado de Pirro”, um livro de história, o autor cumpriu a risca o que aconselhara seu pai, o saudoso poeta cantor de Aracaju: “fatos históricos tem que ser tratado como ciência”.

E ao registrar “os fatos (só) para a informação de Deus”, Renato se apresenta criativo e risonho, de bem com a vida, uma prova que a sua Ana Rosimere o faz ditoso, não só lhe dando filhos, como a alegria necessária para bem viver e escrever.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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