O SAGRADO E O PROFANO

A luta genesíaca do bem e do mal refletiu-se, em muitos momentos da formação cultural brasileira, no antagonismo do sagrado e do profano. Dois documentos do século XVI, na aurora da vida social brasileira, são incontestáveis testemunhos: o Tratado Descritivo do Brasil, de autoria de Gabriel Soares de Souza, datado de 1587, e as Confissões da Bahia, livro sobre a Visitação de Heitor Furtado de Mendonça, na Bahia, incluindo Sergipe, em nome da Inquisição, nos anos de 1591/92, textos insuspeitos que tratam do combate a tudo o que podia ser considerado profano ou herético, afirmando o que fosse ou pudesse levar ao sagrado. O livro de Gabriel Soares de Souza é a mais completa informação sobre as terras e os habitantes do Brasil, cobrindo com invulgar precisão a área compreendida entre os rios Real e São Francisco, – Sergipe -, e seus moradores – os Tupinambás, tidos como Tupis puros. Dentre muitas informações preciosas, sobre modos e hábitos de vida, alimentação, rituais, guerras, o cronista trata do homossexualismo entre os indígenas sergipanos, dentro da visão da luxúria: “…São muito afeiçoados ao pecado nefando, entre os quais se não tem por afronta; e o que se serve de macho, se tem por valente, e contam esta bestialidade por proeza; e nas suas aldeias pelo sertão há alguns que têm tenda pública a quantos os querem como mulheres públicas.” Nada mais característico do profano quanto o sexo, ainda mais quando desnaturado e transformado em mera função instintiva, de homens com homens, mulheres com mulheres. A Inquisição tida como santa não investigou, por exemplo, o adultério dos senhores de terras e de engenhos, nem o abuso sexual por eles cometido contra crianças índias ou negras. Os processos e confissões visaram o sodomismo, na linha condenatória bíblica. Foram registrados, também, casos de sexo com animais, uma prática antiga em todo o mundo. O cristão – velho Heitor Gonçalves, natural da Ilha de Santa Maria, morador de Toque Toque, onde era lavrador e pastor de gado, confessou perante o Visitador que “dormiu carnalmente”, por muitas vezes, em diversos tempos e lugares, com ovelhas, burras, vacas, éguas, “metendo seu membro desonesto pelo vaso das ditas alimárias, naturais delas, como se fora ele animal bruto de semelhante espécie.” Nos processos enfeixados nas chamadas Confissões da Bahia são listados diversos casos de homens e de mulheres que admitiram relações homossexuais. Indígenas, negros, mestiços, colonos europeus, dados as práticas condenadas foram, muitos deles, castigados com a variedade de penas usadas pela Inquisição. Tanto na Visitação da Bahia, como na de Pernambuco, logo em seguida. O homossexualismo tem tomado, nos últimos tempos, uma conotação diversa, de opção permanente de vida, daquelas práticas que vigoravam no século XVI, descritas por Gabriel Soares de Souza e arroladas por Heitor Furtado de Mendonça. O que prevalecia, então, era o sexo pelo sexo, independentemente da situação ativa ou passiva do homem e da mulher. Entre os homens a busca do prazer carnal, não diferenciava muito do homossexualismo feminino, de toques corpo a corpo, de interesse libidinoso. O tipo de colonização, de predomínio masculino, explica em parte a grande incidência de práticas sexuais entre os homens e entre as mulheres, nas fazendas, nos quartos coletivos, em todos os lugares de ajuntamento. Há registro de irmãos mantendo relações, tornando ainda mais promíscua a vida sexual dos primeiros tempos do Brasil. Índias e negras abriram as pernas para os colonizadores, como útero fácil, povoando as terras. O sexo era parte intangível da propriedade, gerando os mamelucos, tipos amaldiçoados pelo Puritanismo da fidalguia portuguesa, difundido pela Companhia de Jesus. Uma fidalguia detentora de poder e de mando. Não se trata, aqui, do acasalamento dos colonos portugueses com índias e negras, constituindo um tipo informal de família, gerando uma prole para dividir, mais adiante, as tarefas das lavouras e dos criatórios. Foi, enfim, pela via do sexo que o compadrio abrandou as relações do patriarcado nordestino, com a criadagem, a vassalagem circulante nos cômodos das Casas Grandes das fazendas e dos engenhos. O sexo abria a porta para que índios e negros convivessem com seus ritos e costumes, festas e tradições, cuja religiosidade diferia, totalmente, do oficialismo católico. O sexo fez a ponte com outras formas profanas de expressão de cultura dos povos que conviviam na terra sergipana. O tema do homossexualismo volta ao primeiro plano, pela voz censora do Papa João Paulo II e pela condenação política do presidente dos Estados Unidos, George W. Bush. Os dois líderes, tanto no plano espiritual e moral, quanto no político, lançaram fortes discursos contra a união de casais do mesmo sexo, que estão oficializadas em alguns países e que vão se tornando comum entre homens e mulheres, cada vez mais expostos, exibindo as suas preferências e constituindo um tipo novo de família. Tanto o Vaticano, que enfrenta problemas de homossexualismo no clero, com episódios que têm chegado ao conhecimento da crônica policial, como o poderoso presidente norte americano são veementes, como se as relações entre homens e homens e mulheres e mulheres ameaçassem o equilíbrio da humanidade. Reedita-se, em certa medida, as condenações morais antigas, com as quais a nascente sociedade brasileira conviveu. O retorno aos valores que o tempo trocou, pelas experiências de povos de vários lugares, é uma forma de intolerância e de ameaça, que tem o calor do fogo, o cheiro da carne queimada, como se o Santo Ofício pudesse, em nosso tempo, se munir de lenha e de brasa para sustar a liberdade de opção sexual, consagrada em vários conjuntos de leis nacionais, em muitas partes do mundo. O bem e o mal, o sagrado e o profano não têm mais as mesmas vozes etimológicas, nem as mesmas aplicações morais. Permitida a reprodução desde que citada a fonte “Pesquise – Pesquisa de Sergipe / InfoNet”

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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