O sonho de Pinduca

Nas vésperas de completar sessenta anos, Pinduca arrumou documentação para reivindicar, por direito de idoso, o cartão preferencial para estacionamento, a primazia nas filas, tudo aquilo que o legislador entendeu de seu merecimento, poder até passear de graça nos transportes coletivos.

Nunca uma certificação lhe fora tão almejada.

Parecia uma medalha, um diploma de honra e mérito, uma certificação cavaleira; poder ser, enquanto cidadão, bem tratado com fidalguia e deferência.

Desnecessário dizer que Pinduca logo exerceu o seu direito de melhor cidadania; na fila do banco, na fila do cinema pagando meia como se fora estudante, e nos estacionamentos aos longevos destinados.

Só não foi passear de ônibus sem nada pagar, porque não era do seu feitio andar de buzu.

Nunca se acostumara com o desconforto oferecido, sobretudo com partidas e paradas bruscas, destinadas ao arrume e desarrume da carga, para compactar em balanceio, o cheio com o recheio.

Eis que dez anos se passaram, e, agora, Pinduca soube de uma nova vantagem adquirida só porque vivo ainda está, com lucidez e firmeza óssea.

Por ser um ancião setentão, estava dispensado da obrigação de votar na próxima eleição.

Virara, como os sócios remidos de clubes que são dispensados do pagamento de mensalidades e outros custos, um companheiro valido da República.

Não iria, ó suprema alegria, enfrentar filas para anular o voto, com já o fazia, orgulhosamente, de longas datas!

Orgulho que suscitava soberbas reprovações de Cassimir Trovatto, isso numa fila de churrasco em baixo custo, e à quilo, onde se pode morder filé mignon a preço de peito acém ou chupa-molho, e os dois pastoreavam a grelha, jogando conversa fora, enquanto o boi era torrado.

“Quem se exime da escolha – realçava professoralmente o Trovatto Cassimir, ao tempo em que fungava um muco gutural seu resistente, escarrando-o no chão encorajado – referenda o escolhido pelos outros!”.

– “Referenda o que?” – perguntou Pinduca, que do escarro presto se afastou, porque de onde vem um, é sempre bom distanciar-se, logo seguirá outro, em mesma gesta e formação.

– “Se você não vota, o outro vota por você!” – Glosou rápido Cassimir em novo pigarreio resistente, o cuspe cobrindo o chão receptivo, sem desculpas ditadas por doutas culpas.

“Agora mesmo, – continuou o Trovatto falante – o Ministro Marco Aurélio soltou o maior bandido da nação porque a Lei o permitia! É o que dá anular o voto; se abster!”

E Pinduca que bem conhecia o novelo e a ladainha que viria entre a coriza e a saliva, sentiu que a conversa não lhe iria sair frutífera, mesmo porque o Cassimir se exaltava, e pior,… pigarreava!

E haja pigarros e grunhidos sequentes, por nasofaríngeos resilientes.

Foi aí que a coisa findou, felizmente!

A carne grelhada para Cassimir já lhe parecera ao ponto, malpassada e sangrante do seu gosto, e que já podia embalar e levar.

Houve então um precipito senão maldito…

A carne quente ofendeu a mão macia do Trovatto Cassimir que a deixou resvalar ao chão, tendo este tão displicente quão prepotente, reivindicado a outra carne, a que seria de Pinduca, como sua, a título de ressarcimento, por substituição.

Como nessa questão de Direito, ninguém o tem, nem confia, Pinduca alertou-o sem alarde: – “Essa é minha! Eu já cuspi nela, inclusive!”

Se cada um cospe o que quer, e ao modo que desejar, inclusive na urna eleitoral, por números de sua escolha, Pinduca irá exercer o seu preceito de não votar na próxima eleição.

Vai acompanhar sua inseparável mulher, Porciúncula, que é sessentona e bela, e ainda está obrigada a votar, sob pena de glosa e multa: uma lástima!

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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