O STF e as uniões homoafetivas – Parte Final

Ao finalizar essa série de artigos sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF n° 132 e ADI nº 4227, no qual houve o reconhecimento da licitude, no ordenamento jurídico brasileiro, da união estável entre pessoas do mesmo sexo, inadmitida qualquer interpretação discriminatória, resta examinar se o STF extrapolou, ou não, o âmbito mais estrito de sua atuação, invadindo, ou não, o campo de atuação constitucionalmente reservado ao Poder Legislativo.

Para alguns autores, o STF extrapolou a mais não poder o âmbito de sua atuação, atuando como usurpador do poder constituinte da nação brasileira, a pretexto de uma interpretação “conforme a Constituição”.

Ives Gandra da Silva Martins, por exemplo, afirma que o STF está “conformando a Constituição Federal à sua imagem e semelhança, e não àquela que o povo desenhou por meio de seus representantes” (“A Constituição conforme o STF”, Folha de São Paulo, 20/05/2011, caderno brasil, p. A-3, seção Tendências/Debates). Seu testemunho foi o de que, na Assembleia Nacional Constituinte, o entendimento que prevaleceu foi o da importância de se mencionar expressamente que a entidade familiar era aquela constituída por homem e mulher, com a finalidade de evitar que outra interpretação pudesse abranger a união homossexual como entidade familiar. Daí concluir a sua crítica do seguinte modo:

"Este ativismo judicial, que fez com que a Suprema Corte substituísse o Poder Legislativo, eleito por 130 milhões de brasileiros, e não por um homem só, é que entendo estar ferindo o equilíbrio dos Poderes e tornando o Judiciário o mais relevante dos três, com força para legislar, substituindo o único Poder que reflete a vontade da totalidade da nação, pois nele situação e oposição estão representadas".

Lenio Streck, por sua vez, embora aponte sua inteira concordância com a justiça de a união homoafetiva ser reconhecida como entidade familiar, sustenta o ponto de vista de que no ordenamento jurídico brasileiro isso somente poderia ser feito por via de emenda à constituição:

“(…) sempre afirmei que, sem uma lei ou uma emenda a Constituição, não se poderia equiparar as uniões estáveis entre casais homossexuais e casais heterossexuais. Aliás, em países conservadores como Portugal e Espanha, a solução foi a feitura de lei ou plebiscito. Por que, no Brasil, essa questão tem que ser resolvida de forma ativista, no STF? Uma coisa é o STF decidir nos espaços que decorrem das omissões (in)constitucionais e dos problemas de (in)compatibilidade entre leis infraconstitucionais e o texto da Constituição. No caso em pauta, é a Constituição que estabelece um limite semântico-pragmático.
A questão que preocupa, portanto, na decisão do STF, é o tipo de interpretação conforme feita pelo STF. Primeiro, não seria uma interpretação conforme e, sim, no modo como dito pelo Min. Ayres Brito, uma Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung (nulidade parcial sem redução de texto); segundo, como fazer uma interpretação conforme (sic) de uma lei que diz exatamente o que diz a Constituição? Levemos o texto da Constituição a sério, pois. Como se sabe, a "fórmula" da ICC é: este dispositivo somente é constitucional se interpretado no sentido da Constituição…! Logo, a fórmula fica assim: o dispositivo que fala "homem e mulher" somente é constitucional se interpretado e lido no sentido da Constituição (que fala exatamente a mesma coisa)…! O Brasil criou uma nova forma de interpretação conforme. Uma brasilianischeverfassungskonforme Auslegung.
Como se vê, há (houve) apenas uma justificativa para a decisão: a justeza da causa. Neste ponto, estaria de acordo. Nunca neguei que a causa fosse (e é) justa. Só que há tantas outras causas justas no Brasil e nem por isso o STF faz (ou fez) esse tipo de "atravessamento hermenêutico". A expressiva maioria dos juristas brasileiros aprovaram a decisão do STF. Portanto, aprovaram uma atitude ativista. O que farão os juristas quando o ativismo não for favorável às suas ideias ou teses? Sim, porque o ativismo não tem controle, pela simples razão de que é “ativista”. Ativismo quer dizer “substituir o legislador nos juízos político-morais”.” (https://.facebook.com/notes/lenio-streck_oficial/lenio-streck-escreve-sobre-a-decis%C3%A3o-do-stf-uni%C3%B5es-homoafetivas/144633118943293)

O professor sergipano de Direito Constitucional, Uziel Santana, defende que a Constituição é muito clara e não deixa qualquer margem para dúvidas no sentido de não admissão, como entidade familiar, da união entre pessoas do mesmo sexo. Sendo assim,

“No caso da união gay, como não havia previsão constitucional para a institucionalização da mesma, o máximo que o STF poderia ter feito era usar a técnica alemã denominada de “apelo ao legislador” (o “Appellentscheidungen”). Esta técnica consiste em o Tribunal exortar ao legítimo representante do Povo – o Poder Legislativo – que, tendo em vista as transformações fácticas da atual realidade histórica, este deve proceder a uma determinada alteração (infra)constitucional. O Tribunal, corretamente, abstém-se, assim, de proferir a declaração de (in)constitucionalidade (ou de descumprimento de preceito fundamental), apenas apelando ao Poder competente e legítimo a procedê-lo. Isso é altamente democrático”. (https://.uzielsantana.pro.br/?p=788).

Tenho sido crítico firme e contundente do ativismo judicial tão recente quanto intenso, em especial do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral. Confira, por exemplo, os seguintes artigos publicados aqui mesmo neste espaço da Infonet:

– “Judicialização das Eleições e Reforma Política” (https://.infonet.com.br/mauriciomonteiro/ler.asp?id=104614&titulo=mauriciomonteiro);

– “A ditadura institucional das súmulas vinculantes” (https://.infonet.com.br/mauriciomonteiro/ler.asp?id=100531&titulo=mauriciomonteiro);

– “Ativismo Judicial e Democracia” (https://.infonet.com.br/mauriciomonteiro/ler.asp?id=77105&titulo=mauriciomonteiro);

– “O Supremo Legislador” (https://.infonet.com.br/mauriciomonteiro/ler.asp?id=76868&titulo=mauriciomonteiro);

– “Poder Judiciário e Reforma Política” (https://.infonet.com.br/mauriciomonteiro/ler.asp?id=66862&titulo=mauriciomonteiro);

– “STF, Mandato Parlamentar e Judicialização da Política” (https://.infonet.com.br/mauriciomonteiro/ler.asp?id=66426&titulo=mauriciomonteiro).

Todavia, no presente caso, filio-me ao entendimento de juristas como Daniel Sarmento e Luís Roberto Barroso, segundo os quais a decisão do STF nada mais fez do que implementar, devidamente provocado para tanto, preceitos fundamentais da Constituição.

Com efeito, a norma do Código Civil (Art. 1.723) que reconhece como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher (observados os requisitos da convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família), ao admitir a interpretação literal restrita que nega à união de pessoas do mesmo sexo o mesmo status de entidade familiar, exigia mesmo ser submetida a uma interpretação conforme os preceitos fundamentais da Constituição.

A técnica da interpretação conforme a Constituição, portanto, foi totalmente adequada ao caso. A norma do art. 1.723 do Código Civil admite ao menos duas interpretações: uma excludente da união de pessoas do mesmo sexo como entidade familiar (interpretação exageradamente literal) e outra que inclui a união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar (interpretação sistemática, que busca evitar discriminação em razão de sexo ou orientação sexual). Admitidas duas interpretações possíveis, possível também é perquirir se ambas estão conforme a Constituição.

E, aí, resta evidente que a primeira não é uma interpretação conforme a Constituição, porque descumpre diversos preceitos fundamentais da Carta da República (dignidade da pessoa humana, igualdade, não discriminação geral e não discriminação em particular por conta de orientação sexual, proteção da intimidade, liberdade). Não se alegue que a única interpretação possível do Art. 1.723 do Código Civil é aquela que o amolda estritamente ao que estabelece o Art. 223, § 3° da Constituição (“Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento”). Interpretar desse modo seria o mesmo que dizer que normas infraconstitucionais podem ser interpretadas à luz de um único dispositivo da Constituição; noutras palavras, seria uma interpretação jurídica “em tiras”, para usar expressão do Professor e ex-Ministro do STF, Eros Grau, que sempre a utilizava para indicar a necessidade da interpretação sistêmica e unitária da Constituição. O STF soube dizer, em boa leitura unitária e sistêmica da Constituição, que a norma do Art. 223, § 3º da Carta Política admite a união estável entre o homem e a mulher, sem que isso traduza, porém, qualquer vedação da união estável entre pessoas do mesmo sexo.

Nesse quadro, conferir ao Art. 1.723 do Código Civil uma interpretação harmônica com os preceitos constitucionais fundamentais (dignidade da pessoa humana, igualdade, não discriminação, liberdade, proteção da intimidade) não representa qualquer invasão do âmbito de atuação do Poder Legislativo, mas, diversamente, conformar a atuação legislativa aos ditames da Constituição. Esse é mesmo o papel precípuo do STF.

A alternativa seria trágica: declaração de inconstitucionalidade do Art. 1.723 do Código Civil, porque dele resulta imposição de tratamento desigual a situações que não encontram diferenciações lógicas e nem lícitas (diferenciação entre união homem-mulher e união de pessoas do mesmo sexo), com o que haveria retrocesso até mesmo em relação ao reconhecimento da união estável entre homem e mulher ante a tradicional e conservadora posição do casamento entre homem e mulher como única espécie de entidade familiar.

Noutras palavras: a técnica da “interpretação conforme a constituição” foi usada aí no mais seu mais legítimo e adequado objetivo: evitar a retirada de leis do ordenamento jurídico, garantindo a sua permanência, porém interpretada de acordo com a Constituição.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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