Casal homoafetivo, duas mulheres foram impedidas de participar da cerimônia de casamento coletivo na manhã de quinta-feira, 13, no Fórum Integrado Maria Virginia Leite Franco, no bairro Santos Dumont, em Aracaju, por decisão da juíza da 27ª Vara Cível, Aidil Teixeira Oliveira. Saíram casadas no papel, mas não puderam celebrar com os casais heterossexuais.
O Tribunal de Justiça de Sergipe vai “apurar o caso para tomar as providências cabíveis”. Afinal, uniões homoafetivas têm sido oficializadas normalmente. Nos últimos dois anos, “foram realizados 319 casamentos entre pessoas do mesmo sexo”, informou o TJ.
A comissão de Direitos Humanos da OAB/SE classificou como “repudiável” a decisão da juíza e o presidente Henry Clay Andrade qualificou o ato de “atrocidade” e “abuso de poder”. Para Linda Brasil, ativista do movimento LGBT, a atitude da juíza foi preconceituosa. “Vamos denunciar na Corregedoria e entrar com uma ação por danos morais”, garantiu.
Por coincidência, no dia anterior, representando o Supremo Tribunal Federal, o ministro aposentado Carlos Ayres de Britto recebeu o certificado MoWBrasil 2018. Oferecido pela Unesco, o prêmio homenageia o STF por ter reconhecido a união homoafetiva e a garantia dos direitos fundamentais aos homossexuais. Britto foi relator das ações que tratam do tema. No dia 4 de maio de 2011, o sergipano proferiu um voto histórico.
Por 10 votos a zero, e a abstenção de um ministro, o STF, seguindo o voto do relator, reconheceu a relação entre pessoas do mesmo sexo como “entidade familiar” e concedeu aos pares estáveis homoafetivos os mesmos direitos e deveres da união entre casais heterossexuais. O voto de Carlos Britto foi dividido em quatro partes.
O sexo
Carlos Britto inicia seu voto, didaticamente – e poeticamente -, explicando que havia surgido na praça um novo substantivo: homoafetividade. “Verbete de que me valho no presente voto para dar conta, ora do enlace por amor, por afeto, por intenso carinho entre pessoas do mesmo sexo, ora da união erótica ou por atração física entre esses mesmos pares de seres humanos. União, aclare-se, com perdurabilidade o bastante para a constituição de um novo núcleo doméstico, tão socialmente ostensivo na sua existência quanto vocacionado para a expansão de suas fronteiras temporais”.
O sexo das pessoas, prossegue Carlos Britto, “salvo expressa disposição constitucional em contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. É como dizer: o que se tem no dispositivo constitucional é a explícita vedação de tratamento discriminatório ou preconceituoso em razão do sexo dos seres humanos. Tratamento discriminatório ou desigualitário sem causa que, se intentado pelo comum das pessoas ou pelo próprio Estado, passa a colidir frontalmente com o objetivo constitucional de ‘promover o bem de todos’”. O homossexual não podia constituir família por preconceito, substantivo que embute o significado de conceito prévio, acrescentou.
Quanto ao uso do sexo nas três funções de estimulação erótica, conjunção carnal e reprodução biológica, a Constituição brasileira opera por um intencional silêncio, observa Carlos Britto. “Tudo que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido. (…) É falar: a Constituição Federal não dispõe, por modo expresso, acerca das três clássicas modalidades do concreto emprego do aparelho sexual humano. Não se refere explicitamente à subjetividade das pessoas para optar pelo não-uso puro e simples do seu aparelho genital (absenteísmo sexual ou voto de castidade), para usá-lo solitariamente (onanismo), ou, por fim, para utilizá-lo por modo emparceirado. Logo, a Constituição entrega o empírico desempenho de tais funções sexuais ao livre arbítrio de cada pessoa, pois o silêncio normativo, aqui, atua como absoluto respeito a algo que, nos animais em geral e nos seres humanos em particular, se define como instintivo ou da própria natureza das coisas. Embutida nesse modo instintivo de ser a ‘preferência’ ou ‘orientação’ de cada qual das pessoas naturais”.
No seu voto histórico, Carlos Britto infere que, se as pessoas de preferência heterossexual só podem se realizar ou ser felizes heterossexualmente, as de preferência homossexual só podem se realizar ou ser felizes homossexualmente. “Ou ‘homoafetivamente’, como hoje em dia mais e mais se fala, talvez para retratar o relevante fato de que o século XXI já se marca pela preponderância da afetividade sobre a biologicidade”.
Ele conclui a parte do voto sobre a questão do sexo afirmando que nada mais íntimo e mais privado para os indivíduos do que a prática da sua própria sexualidade. “Implicando o silêncio normativo da nossa Lei Maior, quanto a essa prática, um lógico encaixe do livre uso da sexualidade humana nos escaninhos jurídico fundamentais da intimidade e da privacidade das pessoas naturais. Tal como sobre essas duas figuras de direito dispõe a parte inicial do art. 10 da Constituição, verbis: ‘são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas’”.
A família
O constitucionalista Carlos Britto observa que a Constituição estabelece especial proteção estatal à instituição da família: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado” (caput do artigo 226). “Mas família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heterossexuais ou por pessoas assumidamente homoafetivas. Logo, família como fato cultural e espiritual ao mesmo tempo (não necessariamente como fato biológico)”.
Britto lembra que a Constituição Federal não faz a menor diferenciação entre a família formalmente constituída e aquela existente ao rés dos fatos. Como também não distingue entre a família que se forma por sujeitos heteroafetivos e a que se constitui por pessoas de inclinação homoafetiva. “Por isso que, sem nenhuma ginástica mental ou alquimia interpretativa, dá para compreender que a nossa Magna Carta não emprestou ao substantivo ‘família’ nenhum significado ortodoxo ou da própria técnica jurídica. Recolheu-o com o sentido coloquial praticamente aberto que sempre portou como realidade do mundo do ser”.
O casamento
O casamento perante o Juiz, ou religiosamente celebrado com efeito civil, existente como forma de proteção da mulher, comparece como uma das modalidades de constituição da família. “Não a única forma, esse combate mais eficaz ao preconceito que teimosamente persiste para inferiorizar a mulher perante o homem é uma espécie de briga particular ou bandeira de luta que a nossa Constituição desfralda numa outra esfera de arejamento mental da vida brasileira, nada tendo a ver com a dicotomia da heteroafetividade e da homoafetividade. Essas duas objetivas figuras de direito que são o casamento civil e a união estável é que se distinguem mutuamente, mas o resultado a que chegam é idêntico: uma nova família, ou, se se prefere, uma nova ‘entidade familiar’, seja a constituída por pares homoafetivos, seja a formada por casais heteroafetivos”.
“Não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um interesse de outrem. E já vimos que a contraparte específica ou o focado contraponto jurídico dos sujeitos homoafetivos só podem ser os indivíduos heteroafetivos, e o fato é que a tais indivíduos não assiste o direito à não-equiparação jurídica com os primeiros. Visto que sua heteroafetividade em si não os torna superiores em nada. Não os beneficia com a titularidade exclusiva do direito à constituição de uma família. Aqui, o reino é da igualdade pura e simples, pois não se pode alegar que os heteroafetivos perdem se os homoafetivos ganham”, reforça o ministro Carlos Britto.
A adoção
Por fim, Carlos Britto afirma a possibilidade de adoção por pares homoafetivos: “A Constituição Federal remete à lei a incumbência de dispor sobre a assistência do Poder Público à adoção, inclusive pelo estabelecimento de casos e condições da sua (dela, adoção) efetivação por parte de estrangeiros (§5º do art. 227); E também nessa parte do seu estoque normativo não abre distinção entre adotante ‘homo’ ou ‘heteroafetivo’. E como possibilita a adoção por uma só pessoa adulta, também sem distinguir entre o adotante solteiro e o adotante casado, ou então em regime de união estável, penso aplicar-se ao tema o mesmo raciocínio de proibição do preconceito”.
Foi um voto histórico de Carlos Ayres Britto. De um valor humano e libertador incontestáveis.