Dois textos: um conjuntural, tentando levar a sério e o outro, brincando apenas.
1. A dor do outro é refrigério
O Deputado, Deltan Delagnol, foi cassado em menos de dois minutos.
O seu crime não interessa: É tido por chato!
E um chato do lado errado, porque o chato do lado certo, nunca é chato. É necessário e indispensável! Que o digam outras cassações de mandato, surgidas e havidas; e já esquecidas, mesmo que fossem imerecidas!
Aqui mesmo, foi por anulação de sufrágios que as esquerdas sergipanas conquistaram um solitário mandato. Um só!
No mais foi uma acabação geral e ainda acham que este salvo único da reprovação comum, livremente confirmada, foi uma expressiva vitória dos chamados blocos progressistas em muitas siglas espalhadas.
E nesse escarro geral explicitado, nunca vimos tantos vermelhinhos escambiados, sem vingar ninguém, em tantos reprovados que se apresentavam como porta-vozes de desvestidos e desvalidos.
Não ficou um líder sindical, um pelego obreiro, um educador grevista, um cristão comunista, qualquer um, homem ou mulher, parente, contraparente ou herdeiro, invertido ou mal convertido.
A todos sobrou o merdeiro, adonde são lançados os dejetos comuns, por inservíveis e já descartados.
Na verdade, de quatro em quatro anos é assim, desde que tenha valor o resultado posto na urna, agora eletrônica, por mais invulnerável, e sempre melhor manipulável, por quem tem o poder da decisão.
Dito assim, no último pleito, mesmo com a nulidade de votos decretada, o eleitorado sergipano recusou os assim chamados legatários escriturados, ou presumidos sucessores, daquela esquerda que se grasnava gloriosa, imbatível e formidável, perante uma direita espumosa e flatulenta, sem liderança nem bandeiras!
Na verdade, no país e por herdade em Sergipe, não há, nem nunca existiu uma liderança que se impusesse e se acreditasse; dextrógira!
De direita nem se achava a antiga UDN, União Democrática Nacional, golpista por excelência, em vasto cabedal historial, de insurreições e tentativas, sempre contra a ordem institucional, e as eleições de modo substantivo, fraudando o resultado e o decidido.
E neste desvalido, um Presidente, Getúlio Vargas, soçobrou face a discursos infamantes, suicidando-se; outro quase não assumiu, Juscelino Kubistchek; um terceiro renunciou “fi-lo porque qui-lo”, Jânio Quadros; e um quarto foi defenestrado, João Goulart, por militares em desfile, sem sangue, tiro ou corneteada.
O resto, na velha via, virou narrativa de dor e gemo, afinal nunca tantos hoje se assombram dos dias que não enxergaram, mas que subexistiram sobremodo, em incredulidade enaltecida, faltando erigir antrazes hagiografias, capazes de enaltecer e gestar o heroísmo vazio da pátria esmaecido.
Ou subtraído, como é mais comum no canto e no encanto que vingou num raio de foguete, ou no rastro falsete que infelicitou por demasia a pátria madrasta comum, em seus eternos desmandos, de maus gestados e compadrios.
E nesse desarreio, até por falta de freio, já que é devaneio pensar assim, bom mesmo é a viúva sem lamento, sempre poder ampliar do erário o orçamento, tirando zeros, de trio em trio, mudando o miúdo e a cédula, do tostão aos derréis, destes aos mirréis, ou conto de reis, de encanto em ponto, as vírgulas fluindo e sumindo; dos Cruzeiros, aos Cruzeiros Novos; dos Cruzados aos Cruzados Novos; das URVs irreais aos Reais, hoje ainda flutuando indefeso, a despeito dos arcabouços fiscais, com todos os Presidentes gastando cada vez mais. E sempre!
Que se queira gastar mais, isso é vício de alcaloide comum.
O que é incomum é ser a Economia uma dama tão promiscua, que tudo permite, aconselha e prescreve.
Agora, por exemplo, há uma discussão mundial: devem os Estados se manter no limite de seus tetos de gastos, domando a inflação e preservando o valor da moeda, ou podem eles pintar papel adoidado, para pagar as contas futuras em promessas adiadas, sempre às gerações vindouras?
E o pior é que o discurso é comum. E ninguém responde em precisão
Em tempos incomuns de outras eras, os nossos Ministros da Economia, do alto de sua sabência monoglota, tranquilizavam os emprestantes da banca internacional, reivindicando a confiança imerecida, sem requerer revalido ou reavalizo, afinal sempre poderíamos resgatar o mutuário pagamento, determinando à Casa da Moeda que fossem aceleradas as rotativas do pinto e do repinto do dinheiro, na boca do tinteiro, só com simples canetadas.
Eram tempos foreiros em que ninguém falava em Banco Central Independente como dogma.
Hoje até o dogma não vale.
Quem quer ser eleito para demitir o funcionário ineficiente, sempre carente de gatilhos salariais sob bestiais rastilhos de paralizações sindicais?
Ah, sindicato, como eras importante no tempo em que tua ração era compulsória e obrigatória, porque assim nunca existira tanta afasia nem sacio.
Não continua pantagruélico o teu apetite, por melhor comilança da melíflua democracia?
Não resiste assim erigido o viço e o ranço da palavra liberdade!? Só com o imposto sindical obrigatório promovendo a liberalidade!
É quando me vem as palavras de Manon Roland (“Liberdade, quantos crimes são cometidos no teu nome!”) esquecida num monumento que visitei, por acaso, na minha última visita a Paris.
Lá estão, presumivelmente, no antigo cemitério de La Madeleine, os despojos de Luís XVI, Maria Antonieta, Olympe de Gourges, Madame Roland, do duque de Orleans, também chamado Felipe Igualdade, de Madame du Barry e de Charlotte Corday, aquela que ousou matar Marat, o jornalista sanguinário, alcunhado de “l’ami de peuple”, ele, que era: segundo só ele; o amigo do povo!
Do povo, pelo povo e para o povo, tal monumento erigido por Luís XVIII, permanece ali, senão abandonado, inacessível, e eu me deparei no seu contorno ao acaso, justamente passeando, como minha melhor companhia.
No entorno do jardim e em seu exercício matinal uma senhora aceitou conversar conosco tecendo algumas informações sobre o monumento.
Li depois na internet que fora um lugar de homenagem puramente monárquico, concluído em 1828, mas que as sucessivas Repúblicas Francesas, todas cinco!, o consideraram, para sempre, um sitio perigoso.
Durante o século XIX, por exemplo, entre os diversos entreveros de República e Império, a França o quis várias vezes demolir, e ali está sofrendo a desvalia do tempo.
Nesse contexto de desconstruo, vale exibir gravura do decidido pela Comuna de Paris, nos idos de “16 floreal na 79”,isto é em 1871; “a Capela expiatória foi considerada um local de peregrinação monárquica perigoso e muitos republicanos ansiavam por seu desaparecimento”.
No Decreto lê-se bem o espírito de tolerância vigente.
Segue a livre versão do decreto:
REPÚBLICA FRANCESA
No 60 LIBERDADE – IGUALDADE – FRATERNIDADE No 60
COMUNA DE PARIS
O comitê de Salvação Publica,
considerando que o imóvel conhecido com o nome de
“Capela Expiatória de Luís XVI” é um insulto
permanente à primeira Revolução e um
protesto perpétuo da reação contra a justiça
do povo
DECRETA:
Art. 1º A capela, dita expiatória de Luís XVI, será destruída.
Art. 2º Os materiais serão vendidos em leilões
Públicos em proveito da administração do domínio.
Art. 3º O diretor dos domínios fará pro-
Ceder, em oito dias, a execução da presente decisão.
Paris, a 16 de floreal do ano 79.
O comitê de Salvação Pública.
Ant. ARNAUD, CH GÉRARDIN, Léo MEILLET
Félix PYAT, BANVIER
Imprensa Nacional – maio de 1871
À parte tudo isso, e só para relembrar outros textos, em recordação dos erros cometidos pela Comuna de Paris, seus fuzilamentos de parte a outra, e até o memorável santuário erigido em Montmartre, abençoando Paris, antes os peregrinos à Igreja de Sacre-Coeur, sem pedir perdão dos muitos pecado cometidos e sempre renovados, têm que singrar pelo largo, Louise Michel, dedicado a “Enjolras”, a resistente radical da comuna, sempre renovando suas iracundas pregações.
Hoje, em tempos jucundos de Macron, coletes amarelos e protestos de reformas da previdência, com direito a lançamento criminal de coquetéis Molotov contra as forças da ordem, que assisti quase de perto, persiste a petulância de rejeitar até o descanso comum de Girondinos como Manon e de outros como os acima citados, que pertenciam a vozes dissonantes dos eternos, por funestos radicais.
Daí valer lembrar o texto citado acima da Comuna de Paris contra o descanso eterno daqueles que lhe não merecem a tolerância pregada.
Desnecessário dizer que tudo acabou à bala e a capela resiste ao esquecimento.
2. À cata da siría.
Há quem diga que viver às margens do Lago de Como é uma maravilha.
Como poderei sabê-lo se o Lago de Como está na Itália, numa depressão dos Alpes nevados, e ali nunca pretendi chegar, nem morar ou passear?
No pensar de Lonemo Pestana, resfolegar às margens geladas do Como é bem melhor que restar remanso, nas mansas plagas de Aracaju.
No entanto, nas duna macias da praia de Atalaia, Lonemo encontrou Tefinha, namorada de Eubolino Frieira, um colega de trabalho que conhecera na montagem de uma caldeira, engenho moderníssimo, a requerer a sua especialidade.
Tefinha era uma moreninha sinuosa, boa de pirão e guaiamum, melhor no remexido do angu, e da moqueca, coisa de farinha temperada no caldo fervente do pitu e do pitéu aratu.
O problema de Lonemo não era a pimenta ardida, mas a saudade perdida do Lago Como, que restava distante, lá esquecido, coisa que ninguém explica mas acontece.
Quem iria trocar as doces águas do Como, preferindo envelhecer junto aos cajus, ou aos maturis dos apicuns daqui?
Pelo menos seria assim, em lamentos melífluos de tristeza, se Eubolino Frieira não tivesse encontrado Lonemo Pestana, que de tanto soluçar saudades, terminou lhe roubando a moquequeira Tefinha, sobrando da siría* as cascas, sem o cheiro e as ovas, em carência de sabor.
(*Do conto e da estória, irei grafar siría assim, acentuadamente, a fêmea do caranguejo sirí, não a substituindo por apuá, o nome correto desta feminidade, que segundo o Google, chega a carregar alguns milhares de ovos. Com o irestado e acentuado, porque assim os que gostam de ouvir o texto não serão confundidos com a Síria, lá no médio oriente, sem lago, e por pior, ressequida, ensolarada.)
Fechando o parêntese desértico e o desvio, direi que Eubolino bem conhecia a garra daquela siría, e o que ela tinha e possuía…
E o que dela depreendia, em afetos e carinhos, por banzo de saudade, esta enfermidade comum que bem lamentam: os rejeitados!
Decidiu então recambiar o comoso de volta a Como, sem o saber como faria.
De farinha pouco, dizia o adagio notório, come melhor quem ao pirão se serve primeiro.
E agora como ele o faria, para tomar só para si, o pirão de um só que não mais lhe pertencia?
Restou assim, ardido como malagueta, ao pensar naquela petisca perdida e nunca esquecida; talagueta!.
E quem desta bragueta, pensou gringueta, o fez certo e sem erro, afinal em traumas de crise, por carência de gueta, vale tudo, até pensar o que não devia, jamais, pois o Demo, costuma atentar e nunca arrefecer; o desejo!
Um lampejo que me faz lembrar de molhos, de antolhos e de sobrolhos, pois aqueles que os misturam, sabem que com alho, cebola, e aceto, faz-se ardido nos olhos dos outros, por natural delírio, um bom refrigério por colírio.
Um frenesi desvario que faz chorar sem sofrer, afinal como dissera o poeta, o que não sofreu por amor, nunca soube o que é penar.
E Eubolino estava de dar pena, gritando com o seu dilema:
– Gosto da siría dela, e quem a come é o gringo de Como!
– Come a siría de quem? – Pergunta um circunstante, comovido.
– Come de quem a siría? – Exaspera-se um outro distante, mais insolente e inconsequente, querendo ver na história um desfecho ambivalente, porque nesse como e não como, ninguém pusera letras maiúsculas para firmar que era um comense, ou um comano, nunca um comatoso ou um comiqueto, poque se assim o fosse, Eubolino não sofreria tanto perseguindo um gentílico lacustre de Como na Internet, que melhor traduzisse e vertesse quem estava a comer a siría que fora sua um dia.
Chega, porém, de brincar, porque nessas coisas de comidas indevidas, sobra o como foi e o como acontece, só não falta é o gracejo do que glosa e não goza, e o gozo de quem não goza, mas se diverte.
Como estamos a viver tempos infelizes e perigosos, talvez seja melhor fazer retornar ao lago de Como o nosso herói, Lonemo Pestana, que em ficção podemos fazer surgir e voltar ao nosso querer, porque a caldeira estava montada e a besteira no plano inconclusa.
E porque assim o quero e finalizo, Lonemo arrastou consigo Tefinha e seu pirão, levando também com ela, a sua, dela, a quem dá a quem quer: a sua siría!
Fora esta a melhor solução para as tristezas de Eubolino Frieira, afastando pra longe o herói, porque nesses causos de amor recusado, por coceira, o que não dói nem corrói, é o que muito se vê e pior imagina.
E nesse imaginar por fim, Tefinha conheceu no lago Como, novos petiscos, nunca tão desconhecidos, por lacustres: do Brochet ao Sander; da Truta familiar dos salmônidas à Perche zebrée, ou perca zebrada, chamada dorée ou dourada; e até o feioso Lotte barbot, mostelle ou mustèle, um desafio a temperos e moquecas sem coco, gengibre, castanha de caju, urucu e flor de dendê.
Quem achou que tudo restou por tolice, melhor é concluir assim: Tefinha no seu como e não como, no lago Como, com o Lonemo Pestana, e Eubolino… Ah, Eubolino Frieira! Continua curtindo a sua saudade, na Praia de Atalaia, à cata da siría que o mordeu…