Reflexão à Quaresma V.

Quaresma é tempo de reflexão, de busca interior, de procura, mergulhar no âmago do ser, onde ninguém pode adentrar, só mesmo cada um, se assim o quiser, para melhor se conhecer.

Os gregos, no antanho do Delfos, convidavam em desafio: “Conhece-te a ti mesmo!”

Para quê? Alguém poderia perguntar em meio a tantas certezas.

E agora, sobremodo, quando foi dito e repetido: “Os livros de Economia estão todos errados!”

Ainda bem, digo eu, errados estão só os livros de “Equonomia”!

Mas, por que falar de cavalos se estes pululam indóceis nos nossos velozes automóveis?

A velocidade do mundo não impõe o esquecer-se, dizer como o sambista em gracejo: “Deixa a vida me levar! Vida, leva eu!”

Motejo até para esquecer a parte final do verso, por ilusória talvez, numa desnecessidade por desafio de eximir gratidão: “Sou feliz e agradeço por tudo que Deus me deu”.

Nos tempos de agora, se agora a Economia não voga, Deus virou uma paisagem tão inerte, que até as nuvens passam e mudam, e só Ele ainda, restou distante e ausente, e para além da mente; inacessível!

Seria incrível, querer dizer que o “Graças a Deus” incredível, restou motejo gentil, um recibo malpassado, por cheque final de endosso, fosso profundo, sem fundo final por concluso, mas concluído por mercantil comercial?

Valeria o “Deo gratias” latino, um simples e formal ladino, um bosquejo de tosca valia e gratidão, por ponta dos lábios apenas?

Pois é! É contra isso que existe a Quaresma, quarenta dias de oração, igual a Cristo retirado à aridez do deserto, ao silêncio interior, ao jejum da comum fruição dos órgãos gustativos e sensoriais, por abstenção organoléptica.

Ali, em excesso de luz e sombra, e em carência de toda ciência, a vida se não se faz impossível, refaz-se difícil, o ser se desafiando a todas as tentações, que só o Diabo talvez encontre a sua razão, por sua missão, de desconstrução do homem em seu livre arbítrio decidir.

Mas, por que falar do Diabo, de Satanás ou mesmo Belzebu, se o Tentador é um ser etéreo, Mefistofélico, ilusório aos sábios, e maquiavélico, em suas ameias, às mancheias de certezas!

Certezas  tão cheias de livros, lemas, versos, de prosa e rimas, de problemas bem postos, por provados teoremas, e vindimas outras licorosas, por teses várias de encanto, como o Bel canto das sereias, seus fartos úberes dadivosos, nunca tanto acalantados pelos sempre eternos nautas da vida, ou náufragos sôfregos, que todos somos à busca de suspiro, porque, no fundo do fundo, da alma e do resistir, resistimos viandantes entre Silas e Caríbdis, nas vagas fluindo, entre o rochedo que esmaga e a correnteza que desvia, porque em todos os tempos há monstros em desafios de Leviatãs e outros que nos fazem, sem o querer ou querendo, em guerra de todos contra todos (Bellum omnia omnes), Calibans assustadores.

Isso só para dizer que ao Leviatã, monstro bíblico marinho, tornado insuperável Poder do Estado Eclesiástico ou Civil, por Thomas Hobbes (1588-1679) e por assim estarmos todos sujeitos, punidos e mal pagos, enquanto Caliban, por outros dados e pruridos, é um ser disforme, feio, rançoso e raivoso, personagem rancoroso de William Shakespeareem “A tempestade” , daquele ao qual faltou luz e beleza, alguém que se tornou assim, embora culpe a Próspero, espécie de deus comum, daquela ilha por cenário, o personagem de suas mazelas, no malquerer de tudo, “nada amando e a tudo temendo”, querendo estuprar a beleza de Miranda, a filha daquele mesmo Próspero, em vingança, e por ciúme, pior queixume de Ariel, que não é o anjo Gabriel, mas tem a sua beleza almejada e invejada.

Ou seja: nessa tempestade que é a vida, somos nautas em busca de guarida contra o Leviatã de Hobbes ou Calibansdesfigurados, “nada amando e tudo temendo”, ou por pior: sem amar e sem temer, e invejando tudo!

E porque somos este entrevero de erros e desculpas à moda Caliban, à Ariel, em dulçura, e ternuras de doce mel, e até a Próspero por seu poder mágico, padecente, tão potente quão inconsequente, do mal que sempre fazemos, sem o querer ou desejar, até por isso, “A Tempestade” do bardo inglês, vale também por reflexão de minha  Quaresma, afinal no seu grito final, o Próspero quase em prece recita: “Meu encanto terminado, reduzi-me ao próprio estado, que é bem precário, em verdade. Agora, vossa vontade aqui poderá deixar-me ou a Nápoles enviar-me. Mas é certo que alcancei meu ducado, e já perdoei quem mo roubara. Por isso, não queira vosso feitiço que eu nesta ilha permaneça tão estéril e revessa, mas dos encantos malsãos livrai-me com vossas mãos. Vosso hálito deve inflar minhas veias pelo mar; caso contrário, meu plano de agradar será vesano, pois de todo ora careço da arte negra de alto preço, que os espíritos fazia surgir de noite ou de dia. Restou-me o temor escuro; por isso, o auxílio procuro de vossa prece que assalta até mesmo a Graça mais alta, apagando facilmente as faltas de toda gente. Como quereis ser perdoados de todos vossos pecados, permiti que sem violência me solte vossa indulgência”

E antes que as palmas da galera não soçobrem, por epílogo de falseio, canto o canto floreio do Salmista: “Não chameis vosso servo a juízo, pois diante de vossa presença não é justo nenhum dos viventes”.

Até outro dia.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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