Um fato narrado em Bragelonne e a apoteose dos mosqueteiros

Conta Christophe Mercier em artigo “Bragelonne, a apoteose dos mosqueteiros”, publicado em 26 de outubro no  LeFigaro Littéraire, que o jornalista, Léon Daudet, felicitando Marcel Proust por sua festejada obra, “À la recherche du temps perdu” (Em Busca do Tempo Perdido), publicada em sete partes entre 1913 e 1927, dissera que este conseguira ultrapassar o massudo, “Vinte anos depois”, de Alexandre Dumas, um elogio que o enaltecido, Proust, lhe respondera que bem preferiria ter ultrapassado o “Bragelonne”, referindo-se ao longo romance “O Visconde de Bragelonne”, onde a saga dos Três Heróis Mosqueteiros, d’Artagnan, Athos, Porthos e Aramis, prossegue em três volumes, misturando-se com a História da França e da Inglaterra, os personagens dialogando com Ana d’Áustria, esposa de Luís XIII e mãe de Luís XIV, “Le Roi Soleil”, o Rei Sol dos franceses, os seus ministros os Cardeais Richelieu e Mazzarino, e outros como Jean-Baptiste Colbert, o célebre gênio das finanças, em camarilhas palacianas nas quais há farta participação de políticos ingleses como o não muito puritano, Lorde Buckingham, em paqueras da Ana, esposa e mãe acima citada, e outros deveras tido por exemplar puritano, como o Lorde Protetor Oliver Cromwell, e os Rei Stuart da Inglaterra, dando sua versão dos fatos, sempre romanceando os feitos.

Sem estar a contrafeito da comparação de obras distintas, o tema me veio a mente porque relembrei perdidos na minha biblioteca os cinco volumes da saga narrada por Dumas: o primeiro e mais famoso; “Les trois mousqueitaires” (Os três mosqueteiros), cerca de 700 páginas; o segundo, e talvez menos folheado;  “Vingt ans après” (Vinte anos depois), cerca de 920 páginas, e os três volumes restantes, pertencentes à saga de “Le Vicomte de Bragelonne” (O Visconde de Bragelonne), cerca de 860 páginas cada um; todos da folio classique, em edição de bolso.

Para minha surpresa, em os folheando novamente, verifiquei que minha leitura fora abandonada em 19 de junho de 2006, justo na página 449 do 1º volume do Visconde de Bragelonne, restando-me a dúvida se devo continuar a leitura dali para frente, ou se devo retornar tudo desde o inicio, porque em sendo um relato de aventuras, o que foi e o que se passou já restou perdido nas minhas lembranças.

Curioso, é que no descrito em folhas próximas dali, há um diálogo entre o Cardeal Mazzarino, então moribundo e sofrendo de dores terríveis, testemunhado por Bernouin, um seu criado cuidador, e por Jean-Baptiste Colbert, o gênio financeiro que assessorava o Proeminente Cardeal, e que faria as suas vezes enquanto sucessor no comando das finanças francesas, no então nascente reinado de Luís XIV.

Sentindo-se esvaziar em forças, o Cardeal oscilava entre os temores da danação eterna, e os horrores de bem legar o tesouro que amealhara aos seus sucessores, a sua parentela, entre sobrinhas do seu querer, tentando restar bem na fita, no relato e na memória, já que sua pregação de fé, contrastava com a fama e a crítica, estas sempre excedendo as baixezas dos homens, relativizando-lhes todas as eventuais grandezas, sempre solapadas pela vasta crítica da comezinha inveja, dos sempre excedentes espíritos miúdos.

Mazzarino fora um grande homem, o maior talvez, do seu tempo.

Alguém que bem soubera conter os cordéis da nascente nação francesa, diante da Fronde revolucionária, que a exemplo da insurgência puritana de Cromwell na Inglaterra, quase derrubara o Reinado dos Bourbons na França, isso entre 1648 e 1653, quando Luís XIV era muito jovem, a França era governada por sua mãe, Ana d’Áustria, o Cardeal de Richelieu já estava morto, e os países vizinhos no faro e vácuo dos conflitos internos franceses ousavam o predomínio da Europa Central.

Na verdade, tal predomínio naquele espaço central, ainda vige hoje, hibernando e esquecido talvez, no seio da União Europeia, já que a História recente daquela região fala das duas Grandes Guerras, numa série de conflitos intermináveis, isso desde longa data.

Naquele tempo a França vivia conflitos ao Norte e ao Sul do seu hexágono atual, se rivalizando com os Holandeses de Nassau, justo nos alagados das Terras Baixas, estendendo-se além das Ardenas Protestantes com os HabsburgosAlemães, e imbricados outros complicados, porque havia também os Habsburgos Espanhóis, sob a mesma coroa, bem além dos Pirineus, com uma fá diferente, por Católica radical, e com outro idioma, o espanhol, sem falar que também do outro lado do Canal, havia uma Inglaterra sempre em luta, sobretudo naquele tempo em que os conflitos navais se estendiam em demanda dos grandes impérios ultramarinos conquistados.

Mazzarino segurara com mão firme as rédeas de um Reino, até bem pouco dilacerado com guerras civis, religiosas, e a França sem o saber se preparava para o seu apogeu absolutista, de onde viria depois a “Debacle Revolucionária”, onde tudo seria revolvido, túmulos inclusive, pelo jacobinismo raivoso, que tudo iria melhor construir, quando nem os jazigos o foram respeitados, enquanto merecido descanso, sem direito à “luz perpétua e o esplendor”, como bem fala a prece comum, dirigida aos comezinhos pecadores, que todos o somos!

“In extremis”, como cada um, Mazzarino se via carente da confissão dos pecados, e o perdão receber, auferir quem sabe, o Santo Viático, a Extrema Unção, por derradeiro Sacramento, como mandava e manda ainda a Santa Igreja de Cristo, ela Santa e Pecadora, amparando os homens, todos os homens e mulheres, nessa terra mourejando em lutas, erros e sonhos.

A confissão, conta Dumas em “Le Vicomte de Bragelonne”, acontecera em duas fases.  Primeiro, um exame de consciência prévio, compartilhado com o cuidador Bernouin, e com o seu auxiliar financeiro Colbert, onde a temática era econômico-financeira, um verdadeiro resumo final contabilizado de haveres e deveres, algo que nem o Cardeal, bem o sabia tudo em memória, do que lhe pertencia somente, e do que era do Estado pertencente, já que nesses escaninhos compartilhados de moeda sonante ou sifra, tudo se perde e confunde, enquanto bruma espessa que nem os avernos elucidam.

Convieram todavia, que o visível e o invisível fora tudo bem recebido e provido, desde que não houvesse sindicância ou malquerença.

Não pensava bem assim o Cardeal, tê-la toda, sua somente, já que trabalhara tanto e economizara muito mais, zelando pelas finanças públicas, estas que nas muitas rubricas, pertencem a tantos dispersos, que a ninguém e a nenhum concernem, quando são bem geridos e preservados?

Todavia, havia fundos expostos que bem cabiam logo devolver, afinal o Estado estava a carecer e o Rei bem o precisava, já que a este faltava tudo, até uma monta qualquer para comprar uma junta de cavalos, compatível com a fidalga monarquia, e até mesmo algum troco para ajudar a seu primo inglês, Charles Stuart II, que sofria as agruras de padecer fora do trono, e até quem o sabe, terminar perdendo a cabeça bem assentada no pescoço, se ao trono voltasse, como acontecera com o seu pai, Charles I, destronado por Cromwell, e com a sua bisavó, Maria Stuart, rainha de tantas coroas, cuja cabeça fora cortada a mando de sua prima Tudor, a Rainha Virgem, Isabel I, numa historia muito longa, mas famosa.

O fato, é que o Cardeal Mazzarino, querendo um confessor confiável, mandou buscar um Monge Théatino, da ordem fundada por Gaétan de Tiene e Pierre Caraffa, Bispo de Théato, confissão presenciada e ouvida pelos fiéis Bernouin e Colbert, seus amigos confidentes.

Ocorre que o Frade Théatino Caraffa, monge afeito à gerência do seu mosteiro, lendo a mente do penitente, percebeu que o Cardeal escondia os numerários antes descritos e compatibilizados, recomendando a sua devolução ao senhor deste numerário, O Rei, como penitência de perdão dos seus pecados.

Vale então citar o diálogo que restou constrangedor:

“Mais c’est le roi qui m’a tout donné…”  (Mas, foi o rei que me deu tudo… ) – balbuciou o Cardeal.

“Um moment! le roi ne signe pas les ordonnances! – interferiu o monge –  Um momento! o rei não assina prescrições deste tipo!

Mazzarino passou dos suspiros aos gemidos.

– “Dê-me a absolvição” – implorou o Cardeal.

– “Impossível , meu senhor,… Restitua, restitua…” –  replicou o frade Théatino.

– “Mas, enfim, você me absolveu de todos os outros pecados, por que não me absolve desse?”

– “Porque, – respondeu o reverendo – absolvê-lo por esta razão é um pecado do qual o rei nunca me absolveria, meu senhor!”

O frade deixou o Cardeal inconsolável e quando tudo acabou, saiu do seu aposento, portando o mesmo sorriso ingênuo que exibira, quando ali adentrou.

– “Colbert, me ajude, meu amigo, estou bem doente, como poderei resolver essa pendência com o Rei?”

Colbert, a muito custo, convence Mazzarino a incluir uma doação ao Rei, ditando a seguinte carta que foi assinada relutantemente pelo Cardeal.

Majestade,

 Prestes a comparecer diante de Deus, senhor dos homens, rogo ao rei, que foi meu senhor na terra, que retome os bens que sua bondade me deu, e que minha família fica feliz em ver passar para mãos tão ilustres. Os detalhes de minha propriedade serão encontrados, – está redigido, – na primeira requisição de Sua Majestade, ou no último suspiro de seu servo mais devotado.

  Jules, cardeal de Mazarin.

Desnecessário dizer que esta carta do Cardeal moribundo ao Rei, foi seguida atentamente por toda a corte que tudo conspirava e fofocava, no contexto da inutilidade de tantos serviçais e protegidos.

Assim é que a carta chegou às mãos de Luís XIV, num momento em que lhe estavam próximos, sua mãe, Ana d’Áustria, e seu Ministro Nicolas Fouquet, Superintendente das Finanças do Reino, todos curiosos em conhecer o conteúdo de tão importante missiva.

No relato de Dumas, a carta foi lida na presença de ambos, e o seu conteúdo espantara a todos, afinal ali continha uma doação de quarenta milhões de libras, quantia impossível de se imaginar, sobretudo numa doação em moeda sonante de prata e ouro.

E quando se trata de bem gestar o dinheiro que não lhe pertence, cada um a seu modo  e parecer, deu uma opinião diferente de como o Rei devia proceder.

Isso porém, será um assunto para outro dia.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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