Ortega, Garcia e a nossa circunstância.

Quando emitimos uma opinião em termos de política, futebol e religião, a torcida ferida, longe de procurar no próprio olho uma trave ou um argueiro que a impede de ver a realidade a sua volta, prefere negar o cenário, apegando-se ao que lhe é discricionário para rejeitar a circunstância.

 

Ora, a compreensão da circunstância é passo essencial para entender o homem, suas carências, sonhos e angústias.

 

Sobre si mesmo enquanto homem se ensimesmando em sua circunstância, Dom José Ortega y Gasset, um homem de muitas generalidades, afirmou com autoridade: “Eu sou eu e minha circunstância, e se não salvo a ela, não me salvo a mim”.

 

Compreeende-se, portanto, que os homens se matem e se roam por suas paixões, porquanto cada ser é ele próprio e sua circunstâcia. E a minha circunstância mesmo que imersa no mesmo oceano, difere da circunstância do meu vizinho, embora estejamos nos banhando ou afogando nas mesmas águas.

 

Das águas, e dos banhos, por necessário, e até na alegoria do viver, Heráclito de Éfeso, muitos anos bem antes e bem distante, nos dissera e ao mundo sempre eterno e transiente: “Ninguém se banha duas vezes nas mesmas águas” .

 

As águas passam, nós passamos por elas. As aguas passam e nós mudamos com elas. E as águas sempre mudam quando passamos por elas.

E nesta mudança sem fim é construida a nossa circunstância, enquanto animal político em meio à barbarização da besta imersa no nosso interior, resistindo ao processo de humanização do ser que propõe a tolerância e a aceitação das diferenças.

 

Por que ainda é tão difícil aceitar o outro, mesmo agora em pleno fastígio científico e cultural?

 

Por que é terrivel conceber o pensar em divergência, nas cores, nas flores e nos horrores? Onde está a humanização do ser tão clamada sem logro por credos iluminados ou por postulados, bem provados e fundamentados sem logro de medos?

 

Como fazer o bom debate fluir, criar e esclarecer, se em tese, pensamentos discordantes são dirimidos por concepções rasteiras e medíocres que desqualificam sem aclarar?

 

Como também acordar os indiferentes, estes cádáveres insepultos que se jazem nos cemitérios erigidos em suas próprias vidas de muitos sonos?

 

Como despertar o colorido da vida ao nosso redor, se em outros os motivos de sorriso, lhe ressudam o Narciso equivocado, quebrando espelhos, xingando a si e a sua circunstância? Ah Ortega, que não os abandona em seus recalques, neles raizedos  por raivosos, mesmo que a tudo maldigam, babando aquela fúria rábia que só deveria ser da besta-fera, do inumano, do desumano, do não humano desapaziguado no ser!

 

Ah Ortega, que insere este homem enraivecido e envilecido seja no turbilhão irefreável da tempestade, seja no mar revolto da intolerâncaia, ali discorrendo em “La caza y los toros”  (A caça e os touros), aqui o tropel dos touros em disparada em La rebelión de las masas” (A rebelião das massas, 1930)!

 

É o mesmo Dom José que perquire o conhecimento, refletindo em “En torno a Galileo” (Em torno de Galileu, 1933-34), tentando em meio á crise de seu país e da Europa, criar um esquema que compreendesse a própria crise.

 

E é neste contexto de crise em que tento buscar incessantemente a verdade, uma verdade que também seja minha. Eu que continuo simplisticamente, e até simploriamente, a ver a humanidade repartida entre os que a constroem, os que tudo destroem e os que a tentam conservar.

 

E a parte destes que ousam fazer algo, há os eternos insatisfeitos, os sempre incomodados com tudo, inclusive os que se crêem cercados por tolos e néscios e que não conseguem atrair para sí nem o escarro, nem o escárnio em substituição aos aplausos jamais auferidos.

 

Mas, eu só desejo falar de aplausos.

 

Eu desejo aplaudir, efusivamente ovacionar, por merecedor, como sói os construtores e os que conservam o merecem. Refiro-me ao Professor Antônio Garcia Filho, o real fundador da Faculdade de Medicina de Sergipe, por “sua vontade indômita”, como foi dito à época, e hoje está como um feito quase esquecido, já se vão quase cinqüenta anos.

 

E que ficaria mais esquecido ainda se seu filho, o ex-Reitor Eduardo Garcia não tivesse a feliz idéia de testemunhar os feitos de seu pai nesta luta indormida visando o desenvolvimento intelectual nas terras sergipanas. Um desafio imenso, sobretudo porque a palavra de Antônio Garcia motivou e destacou o Governo operoso de seu irmão Luiz Garcia e o chamado de ambos conseguira despertar inércias, e acomodamentos, refutando o conformismo e o esmorecimento, e até os nunca efêmeros invejosos de tudo.

 

E assim a obra que não fora só deles, porque sozinhos também nada fariam Anibal, Alexandre, Napoleão ou Caxias, eis agora a batalha e a guerra vitoriada por todos, inclusive da arquibancada em pouco aplauso, do banco de reserva que não suou a chuteira, e até daqueles que a contragosto foram vencidos pela vaga irreversível que se fez rio pujante e permanente.

 

Em boa hora, portanto, Eduardo Garcia traz a lume este refletir em torno de seu pai, o Professor Antônio Garcia Filho e a circunstância do seu viver em terras sergipanas, dessafiando-se, e à própria circunstância, para repelir a aridez miúda do mesquinho, fustigando a acomodação pacífica dos que preferem restar na indiferença dos moucos a abafar a rala vaia dos loucos, e se fazer roucos em aplausos e guizos de conquista.

 

Em boa hora, repito, fez bem o ex-Reitor Eduardo, lembrar-nos de seu pai e de velhas histórias da quase cinquentenária Faculdade de Medicina de Sergipe, refazendo e recosturando a sua história, resgatando feitos e destacando fatos esquecidos pelo olvidar dos tempos e pela conveniência dos homens que adjetivam e substantivam, desbotando, esmaecendo, desfocando e até apagando os feitos e os heróis em seus relatos. Coisas dos vezos, dos desavezos e dos desprezos do humano.

 

Desprezando estes desavezos e desprezos, Dom José Ortega y Gasset, um homem de muitas generalidades, afirmou, e eu o repito novamente: “Eu sou eu e minha circunstância, e se não salvo a ela, não me salvo a mim”.

 

Mirando em Ortega e atingindo Antônio Garcia Filho, um sergipano de Rosário do Catete, este também um homem de muitas generalidades, direi sem excessos de generosidades, ou outros interesses disfarçados, que Garcia como Gasset, não só se salvou a sí próprio, como até a sua própria circunstância, que restou melhor com sua ação e sua passagem entre nós.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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