Os Garcia Moreno de Sergipe – Uma saga a perquirir V.

I. O Vigário na Doce Província.

 

No livro “Doce Província” (1960), Livraria Regina Aracaju – SE, o Médico e Psiquiatra João Batista Peres Garcia Moreno, o neto mais famoso do Padre João Batista de Carvalho Daltro, manifesta na crônica “O Vigário”, grande vontade de conhecer maiores detalhes da vida de seu avô.

 

Pelo que parece, o texto “O Vigário” surgiu em data bem posterior à inauguração do monumento homenagem ao Monsenhor João Batista de Carvalho Daltro, erigido na cidade do Lagarto em sete de setembro de 1947, solenidade em que Moreno presenciou como um dos seus oradores, oração que não foi inserido no seu livro de discursos “Letras Vencidas” (1955), restando, por certo, inédito ou perdido.

 

Monsenhor João Batista de Carvalho Daltro em sua maturidade.

Talvez, por uma questão de recolhimento, receio de mergulhar em águas muito pessoais e túrbidas, Moreno evitou adentrar neste terreno íntimo e bastante sentimental, preferindo que outrem o fizesse, sem paixões, norteado por melhor imparcialidade científica e testemunhal.

 

É ele quem afirma “seria um grande livro a existência romanceada do Monsenhor com suas virtudes e seus pecados, desenrolada em largo trecho da história lagartense”.

 

II. O texto de Garcia Moreno.

 

O Vigário.

 

A figura do Monsenhor João Batista de Carvalho Daltro está pedindo um biógrafo, que reconstrua, aos olhos da atualidade sergipana, os seus traços mais representativos e as suas cores mais verdadeiras. O esboço biográfico, pintado em conferência por Gervásio Prata, reclama ampliação que o ilustre jurista poderia e deveria fazer, com indiscutível autoridade e elegância estilística, sob a inspiração da paisagem do retiro encantador da serra da Miaba. Meu pai encheu os seus últimos dias de vida, pesquisando sobre o velho vigário do Lagarto, redigindo páginas incompletas de uma biografia, que encontro nos papéis que me tocaram por herança. Seria um grande livro a existência romanceada do Monsenhor com suas virtudes e seus pecados, desenrolada em largo trecho da história lagartense. Enquanto não chega a retratação fiel da grande figura humana, as deformações fatais das estórias gizam os traços caricaturais, na boca do povo, de um perfil rústico em que a verdade e a lenda se condensam na mais típica aliança sincrética.

O zelo pelos rigores litúrgicos, a franqueza do sacerdote, a intuição do destino agrário de Lagarto que se atribui ao vigário, continuam a circular, mais de 50 anos transcorridos de sua morte, no bojo das anedotas. Marcos Ferreira é um milionário delas. Ontem, numa pequena roda do Instituto Histórico, em que Zózimo Lima nos serviu uma saborosa amostra oral das memórias que está escrevendo, Marcos nos deu, com a mesma parcimônia como empresta o dinheiro da Caixa Econômica, algumas moedas das que se forma a riqueza anedótica da vida do “Padre DATA”.

 

Casamento.

 

O cortejo vem de longe. Noivos, padrinhos e convidados penetram na igreja, na hora aprazada. O padre se encontra no altar. A cerimônia começa. Os nubentes, mais do que a repisada afinidade eletiva goeteana, têm uma verdadeira afinidade química. Quando Monsenhor lhes indaga a respeito do clássico “leva gosto”, a noiva tabaroa quer ser fiel aos seus sentimentos e traduzir, da melhor maneira, suas apetência pelo tabaréu com quem está se casando. Para responder e exprimir a plenitude do consentimento, procura, no vocabulário pitoresco de sua linguagem, uma voz que nasça do fundo de sua biologia.

– Deseja casar com Fulano?

– Tou miando, seu Vigário!

Padre Data levanta a sobrancelha e pigarreia. Dirige-se ao noivo, que também vai responder mais com uma imagem do que com palavras.

– É de sua vontade casar com Fulana?

– Tou aos botes, seu Vigário!

– Pois não caso, explodiu o Monsenhor. Como posso casar gato com cobra?

Passou-se um mês. – Os noivos melhoraram a linguagem, quiseram e voltaram. Casaram. Viveram longos anos e deram às malhadas de Lagarto muitos braços.

 

Confissão.

 

O Vigário já andava perto dos oitenta. Cansado, com as deficiências da arteriosclerose generalizada. Deu para cochilar no confessionário, em meio às indagações dos pecados das almas. Muitos pecadores percebiam, no silêncio inesperado do padre, uma traição do sono invencível e se afastavam, sem barulho, com a alma mal lavada. Vendo a retirada, outra ovelha ia ajoelhar-se aos pés do pastor e abria o coração. Um dia, mal uma beata começou a contar o pecado pouco asseado do furto de um tacho, o vigário adormeceu. A mulher deixou o confessionário. A imediata chega barulhenta e desperta o confessor. Inicia o debulhamento de faltas, totalmente desligadas do furto. Monsenhor, sem perceber que era outra a paroquiana, indaga:

– Mas como foi o furto?

– Que furto, seu Vigário?

O confessor encara a mulher e verifica o engano. Sai do confessionário e grita para a velha que lesara a propriedade do próximo, já à porta da matriz:

– Ô senhora que furtou o tacho, Volte! Venha contar o resto.

O apelo já era a penitência. Publicamente.

 

III. O contexto e a circunstância de “O Vigário”.

 

O texto de Garcia Moreno, pela leveza e humor, procura contar algo que bem se encaixaria no cotidiano de um Cura de aldeia, tentando apaziguar as almas, elevando-as para o enaltecimento do ser, evitando em luta renhida, a bestialização do existir e conviver.

 

Marcos Ferreira de Jesus, Garcia Moreno e Zózimo Lima

A crônica, leve e engraçada, surgiu dos comentários acontecidos numa conversa informal entre Moreno, Zózimo Lima e Marcos Ferreira de Jesus, “um milionário” das anedotas e casos atribuídos ao velho Monsenhor.

 

IV. Um pouco de Zózimo Lima.

 

De Zózimo Lima (1889-1974), o inigualável cronista de “Variações em Fá Sustenido”, neto do Padre Francisco José da Silva Porto, há muitos escritos dispersos, inclusive abordando temas de erros e virtudes de alguns reverendos daqui e de fora.

 

Nada encontrei, porém, quanto ao Monsenhor Daltro do Lagarto, no livro “Variações em Fá Sustenido”, coletânea coligida por Zózimo Lima Filho em 2002 dos escritos de seu pai.

 

Segundo o relato acima de Moreno, Zózimo estava preparando um livro de Memórias que muito seria bem vindo hoje se viesse a lume, bem como outras “Variações” que não foram incluídas no livro homônimo publicado.

 

V. Outro tanto de Marcos Ferreira de Jesus

 

Quanto a Marcos Ferreira de Jesus (1893-1983), o “milionário” de anedotas do velho Padre, este por certo as conhecia de comentário e folclore.

 

Marcos, embora fosse natural de Simão Dias, convivera pouco ou quase nada com o Padre Daltro. Era muito jovem ainda e já Daltro era vigário no Lagarto.

E Marcos, que se destacaria como Político, Administrador e Maçom, era ainda um pré-adolescente, quando em 1905, com doze anos apenas, foi residir no estado do Amazonas, acompanhando o Padre Filadelfo Macedo, seu companheiro de viagem pelo Solimões, só retornando a Sergipe em 1918, oito anos após o falecimento do velho Monsenhor.

 

De Marcos Ferreira, uma memória realçada pelos que o conheceram, nenhum escrito restou. Quanto a Zózimo Lima, muita coisa ainda merecia a publicação. E neste particular o poder público deveria estimular e promover, um bom serviço à nossa história.

 

VI. A sempre difícil missão do Padre.

 

A despeito do tônus anedótico do texto de Garcia Moreno vê-se quanto é exaustiva a ação sacerdotal e profética de um Vigário; repelir a atração pelo vulgo e sua desorganização entrópica, evitar a atração pelo sensorial do bruto e sua irracionalidade. Eis tarefa assaz difícil tanto de educadores quanto de sacerdotes, e do agricultor em sua luta para desbastar o joio, o fungo e a praga, inimigas eternas do bom plantio

 

Mas, a despeito dos atuais tempos joios de indiferença em termos de procedimento e crença, o texto do Padre Daltro, “Missão no Riachão”, publicado no Jornal Correio Sergipense de sete de janeiro de 1864, revela quão notável fora o ministério da Igreja no processo de formação da nossa atual cidadania, que finge tudo esquecer e jamais recapitular ou perquirir o passado, como se o hoje, enquanto atual, tivesse surgido por geração espontânea de efeito sem causa.

 

VII. O resgate histórico de João Oliva Alves, memória viva sergipana.

O intelectual e jornalista João Oliva Alves, grande memorialista sergipano

 

Este texto “Missão no Riachão”, referido por Armindo Guaraná no seu, monumental e jamais imitado, Dicionário Biobliográfico Sergipano, foi-me agora resgatado pelo Jornalista, Memorialista e Escritor, João Oliva Alves, um grande filho de Riachão do Dantas, membro da nossa Academia Sergipana de Letras.

 

João Oliva é autor do livro “Sobretudo a Imprensa” e de uma inumerável, por abundante e copiosa quantidade de escritos espalhados.

 

Dispersos no tempo e no espaço, os textos de Oliva foram e estão jogados às mancheias, por décadas, na imprensa pátria, seja no anonimato editorial, seja em coluna assinada, seja ainda em programas radiofônicos em pseudônimos variados.

 

Textos semeados ao léu e ao vento como assim devem ser aos de boa palavra, lançando-as a todos os terrenos, férteis, áridos, desérticos ou indiferentes, desafiando-lhes a germinação e o eco, o desenvolvimento e o fruto, tudo sem visar retornos e encômios.

 

Igual a este escrito do Padre Daltro, uma preciosidade guardada por João Oliva, e que agora é resgatado, quando tantos a ele se referiam, sem conhecê-lo, por longínquo e inacessível.

 

E o texto, por seu caráter testemunhal, constitui uma profissão de fé de um Sacerdote Cura em sua pequena Freguezia do Riachão, realçando a importância das suas escolhas, enquanto homem e ministro do altar; um chamado à conversão ainda agora, por testificadora e edificante.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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