Os Garcia Moreno de Sergipe – Uma saga a perquirir VII.

1. Um reformador comunitarista ou mais um pregador jesuíta?

 

Hoje, passados mais de cem anos da morte do Monsenhor João Batista de Carvalho Daltro, e a despeito de variado estudo sobre sua figura de pastor, pouco foi acrescentado substantivamente sobre a sua ação no Lagarto.

 

Crê-se, nestes tempos de práxis utilitária, que esta ação se resumira a fomentar da tribuna e do altar o estímulo à fragmentação da terra, criando uma exigência de posse, ganho e sustento como condição precípua para que nubentes recebessem a sua bênção matrimonial.

 

Sem descrer nesta inusitada ação de fracionamento agrário, reformismo que bem pode soar fantástico, por folclore e lenda, creio-a permear uma apreciação sociologicamente apressada, carecendo uma prova mais firme e menos hipotética.

 

Acho que, enquanto líder de sua comunidade, a sua ação sacerdotal ultrapassa este perfume embriagador, tão caro às ideologias com fulcro na mais valia e abominação da privada propriedade, alcalóide vicioso que subsiste ainda agora com o persistente desprezo pela grande empresa agrícola e o agro negócio  

 

Como é bem melhor reforçar tal versão que pesquisar o homem, seu entorno e sua circunstância, eis o Monsenhor quase restrito a esta missão comunitária, enaltecido por ensejar uma doce reforma agrária estimulando o minifúndio.

 

Animá-lo-ia por acaso um viés pré-socialista, ou comunitarista à Saint Simon, Robert Owen ou Charles Fourier, seus bem distantes contemporâneos? Caber-lhe-ia em sua pregação à frente do altar de N. S. da Piedade reverberar o Novo Cristianismo de Saint Simon, dizendo aos lagartenses abastados: “Uni-vos em nome do cristianismo e aprendei a cumprir os deveres que o cristianismo impõe aos poderosos; lembrai que o cristianismo os obriga a dedicar suas energias à tarefa de melhorar o mais depressa possível a situação dos miseráveis”?

 

Se não o fora tanto assim, como imaginá-lo botando para correr as prédicas igualitaristas de Antonio Maciel, o Bom Santo Conselheiro de Canudos em sua passagem no Lagarto?

 

Se não foi de todo liberal e menos ainda em rigorosa ortodoxia, diria que sua imagem se confunde com o que sempre fora a missão quase única dos colonizadores jesuítas e seus sucessores; a sensibilidade para o sofrimento do outro e o combate à exploração do homem pelo homem.

 

Neste particular e por mourisca tradição ibérica, o luso colonizador escravizava os índios apropriando-se de suas mulheres e filhas, com elas se amancebando em indecência e poligamia.

 

Fato tão comum e generalizado, que outro lagartense, Abelardo Romero, vira nesta mancebia libidinosa a “Origem da Imoralidade no Brasil”, produzindo o desregramento moral nunca visto em “terra brasilis”, afinal o nativo era contemplativo e pouco sensual. E, até como piada jocosa em pintada fogosa, era comum afirmar-se que as nativas em geral, apaixonavam-se perdidamente pelo tacape português, por mais fogoso, maior rigidez e melhor tamanho. Ou seja; reunia-se a fome com a vontade de comer. E a missão do sacerdote era um chamado à ordem e ao bom senso.

 

Mas, a ação de Daltro melhor pode ser descrita por aqueles que o conheceram.

 

2. O depoimento do Desembargador Gervásio Prata.

 

O melhor depoimento sobre o Monsenhor João Batista de Carvalho Daltro talvez seja ainda o da lavra do Desembargador Gervásio Prata (1886-1968), jurista e intelectual Simãodiense que possui também um notável trabalho sobre a questão dos limites de Sergipe, tese hoje esquecida, pela irreversibilidade e imutabilidade das nossas fronteiras com a Bahia.

 

Sobre o velho pároco do Lagarto restaram o seu texto “O Lagarto que eu vi”, palestra radiofônica transmitida pelas ondas da Rádio Difusora de Sergipe na noite de 26 de setembro de 1943 e o opúsculo “Monsenhor Daltro”, discurso pronunciado em 7 de setembro de 1947 quando da inauguração de busto do Padre Daltro na cidade do Lagarto.

 

É este último texto de Gervásio Prata que bem vale repetir:

 

“Lagartenses!

 

Há 37 anos vós rasgastes no vosso chão e sob a cúpula do vosso belo Templo, entre os vossos altares e os vossos Santos, uma sepultura para o eterno sono do vosso venerando vigário, que aqui viveu e envelheceu ao vosso lado, como bondoso apóstolo romano da cristandade nesta terra.

 

A extrema idade já lhe havia abatido as energias, e, no fim, para ir ao Templo, único lugar até onde seus pés chegavam, era arrimado a mãos amigas ou dedicadas, que não faltavam.

 

E quanto mais as neves do tempo lhe desciam sobre os ombros, mais o Lagarto parecia rever-se e olhar a si mesmo, como se fosse a sua própria imagem refletida na lâmina de um cristal ou no espelho da superfície tranqüila das águas.

 

Aquele porte maciço, mas vergado pelas lufadas de tantos invernos sobrepassados, pondo à mostra a desilusão do que é a existência humana aos 82 anos, – um crepúsculo de tristeza e de sombras – continha em si todo o Lagarto do seu tempo e era no seu tempo o patriarca de uma terra.

 

A sociedade o distinguia como a suprema honra dos seus homens, não que outros não existissem honrados e considerados também, mas pela razão aceitável de reunir atributos veneráveis e importantes na função sacerdotal de pastor católico.

 

Conselheiro experiente e moderado, amigo de seus amigos, estranho à política e aos cargos públicos para ser somente de sua igreja, padrinho de tantos lares, dos mais pobres e humildes o patrono assistente e infalível.

 

A maioria lhe tomava a bênção, e quase todos abençoados lhe beijavam a mão.

 

Não se dirigia preferentemente aos solares ricos ou em festa. Ia-lhes a todos, um por um, indistintamente, fosse partilhar das alegrias, fosse levar a um enfermo a sua visita ou às famílias em luto o consolo de suas palavras, fosse dar assistência aos lares em ruína ou na penúria decaídos.

 

Não havia sacrifício em ser bom e prestativo.

 

Era consolante e paternal.

 

A flama do bem o impelia a ser a mais e mais humanizado com os seus semelhantes.

 

Desde o levantar-se do leito, defrontava à sua porta, na pequena praça ali existente, pobres e indigentes esperando pelas graças da acostumada munificência.

 

E o que primeiro fazia com o prazer de quem emprestava a juros era distribuir cédulas de 2$000 e cortes de fazenda. Ninguém se retirava senão minorado da precisão ou atendido.

 

Era a cena habitual que a cidade assistia comovida.

 

Nunca a preocupação dos haveres o fizera estagnar nos limites do que já houvera feito.

 

Notando que muito restava fazer pelos necessitados, pois os óbolos de caridade pública não correspondiam ao sofrimento da doença, fundou o Hospital N. S. da Conceição, a menina de seus olhos, sua obra maior, que há meio século vem servindo a tantos e muitos mais há de servir ainda.

 

Deu-lhe sede, instalações, pecúlio para o custeio, e, por último, as economias restantes e a sua própria casa de residência, todo remanescente patrimônio ganho com a sua batina de padre.

 

Quase à sua custa fez o Cemitério da cidade, o piedoso campo santo dos mortos, onde não há de vós quem nele não tenha uma recordação, uma saudade, uma lágrima a derramar, uma flor a depor, um pedaço do coração misturado ao pó das areias que ali estão.

 

E o Tanque dos Missionários e o Tanque do Pacheco, que ampliou a terminação das obras da Igreja Matriz e suas sacristias laterais, o grande prédio da Prefeitura Municipal, construído por sua interferência junto aos poderes públicos e do mesmo modo a Ponte sobre o rio Caiçá, ligando esta cidade à de Simão Dias.

 

Não há, neste vosso lugar, um recanto contemporâneo de seus dias que não fale de sua atenção ou de sua passagem, sabido que nunca se alheava à marcha dos acontecimentos locais, por isso que se punha atento e procurava orientar, quanto possível, a sorte da população no sentido do seu bem estar.

 

Figurava sempre no interesse coletivo.

 

Não se poupava quando era de servir à religião e à comunidade e a tudo acorria com relevo marcante de caráter, personalidade, desprendimento.

 

Aos infelizes atacados pelo cólera morbus fora levar pessoalmente e com risco de vida o conforto da Igreja e os auxílios materiais conseguidos: rechaçou Antonio Conselheiro e seus fanáticos, de efetuarem pregações no Lagarto, expulsando para além de Paripiranga, forçando-os a retrocederem aos seus antros dos sertões de Canudos; abalou-se para extinguir no município de S. Paulo, deste Estado, a seita do Padre Felismino da Costa, que pregava o próximo fim do mundo e contra o casamento, indo levar o infortunado sacerdote até o Asilo S. João de Deus, na cidade de Salvador, onde faleceu; nomeado Capelão da Irmandade N. S. do Bonfim, também em Salvador, teve necessidade de resignar o posto em condigno gesto que mereceu louvores.

 

Foi, já depois de homem feito e após ter abandonado os misteres da lavoura e vendido a seus irmãos as terras de suas heranças e culturas do seu trabalho, que procurou estudar e ordenar-se no Seminário da Bahia, sendo, em seguida, pároco do Riachão, de onde se passou para o Lagarto, por nomeação também do Imperador Pedro segundo, a quem fora agradecer a preferência do seu nome na lista tríplice enviada pela Arquidiocese para preenchimento da Freguesia de Lagarto posta em concurso. O imperador já o conhecia de nome e recebeu-o com inesquecível atenção.

 

Seus títulos foram os de Arcipreste, Vigário Geral de Sergipe, Cônego e Monsenhor, e mais o de Comendador da Ordem de N. S. Jesus Cristo, conferido pela monarquia imperante.

 

Mas fora o Lagarto o cenário que lhe empolgou a vida, onde acabou por sublimar-se ídolo da mitologia local.

 

“Pai do Lagarto” era como o chamavam ali. E quando a velhice extremou-se, e foi quando a popularidade absorveu-o, completamente, o tratamento ficou sendo o de “Ioiô”, no sentido de que era o patriarca da grande família do Lagarto.

 

Por toda parte cheio de compadres e afilhados, via-se-lhe ressumar a hierarquia da sua presença e da sua autoridade moral que a todos infundia.

 

Muito franco e às vezes até rude, quando havia de admoestar uma ação, profundamente sincero e justo, só procurava falar com a verdade e contava com a superioridade que lhe era peculiar, de não lisonjear ninguém.

 

O homem não tolera seus atos sejam censurados ou reprovados por seus iguais, mesmo possuindo a consciência do erro. Diante dele, entretanto, ouvindo-o, todos se quedavam, respeitosos ou conformados.

 

E tal a intransigência a que levava as doutrinas da fé, não permitia fossem padrinhos de batismo os que não satisfizessem às exigências do sacramento. Não importava a posição ou categoria da pessoa. Tanto que Felisbello Freire, Joviniano Romero e Libério Monteiro, elementos brilhantes da formação intelectual do tempo, foram de fato recusados por não se submeterem a rezar o Credo.

 

Eminentemente supra individual, se generoso com os demais, que dizer do que dispensava aos parentes, muitos dos quais pôs nos estudos, por sua conta, deu-lhes recursos materiais e incentivos pra se rumarem na vida!…

 

Acolhedor com ele, recebia com prazer a quantos procuravam a sua hospitalidade sabidamente farta.

 

Tudo fazia pelo prestígio e esplendor do culto católico. Na sua Igreja esse culto ganhou a justa fama do que gozava.

 

Como eram pomposas as celebrações da Semana santa, do mês de Maria e da Padroeira da Piedade!…

 

A tradição corria longe e abastados proprietários de outros municípios chegaram a adquirir casas para mais à vontade assisti-las.

 

Bem raros são os que se movem inspirados por um ideal moral. Ele, porém, sentia a volúpia irresistível de fazer o bem. E como o bem é sinônimo de justiça, de caridade, de beleza, daí a nobreza espiritual de sua vida modelada pelos mais puros sentimentos cristãos.

 

Lagartenses:

 

Não seria por mero prazer ou simples vaidade que esse torso de homem tenha vindo ocupar uma das praças de vossa gloriosa cidade.

 

Há nesse gesto largo, uma feição indelével de mentalidade e caráter. Distinguindo a quem aqui cinzelou, por fatos e exemplos vivos, as grandes virtudes da vossa constituição espiritual transmontando as possibilidades comuns dos homens.

 

É antes a projeção das qualidades profundas da vossa alma o que resplende neste monumento, nele confundidas as reservas dos vossos sentimentos, tal a fôrma se confunde na substância, tal o espírito funde no corpo.

 

É a glorificação das vossa próprias tendências. Por isso que tanto amais o que é justo e benfazejo.

 

É louvável que as gerações novas tomem das mais antigas, ensinamentos como este, que fortalecem os povos, aprendendo os jovens a conhecerem, por seus nomes e seus feitos, seus homens e seus pro – homens desaparecidos, para que não fiquem esquecidos na noite dos tempos.

 

Que edificante lição não se transmite assim a humanidade com esse exemplo de amor aos homens , de amor à terra, de amor ao Lagarto.

 

Deveis estar hoje ufanos se já não fosseis da admiração geral obreiros modelares de uma prosperidade sem luxos e sem riquezas ante a modesta e despretensiosa, que os vossos campos de labor denunciam à vista na alegria e no trato das vossas culturas na risonha paisagem das vossas moradias alvas, singelas e felizes…

 

Aqui jazem os domínios de seu amado império de sacerdote, manancial de reservas sãs, que o Lagarto guarda com zelo das cousas sagradas para nunca mais se acabar. E jamais há de faltar dentre vós, quem conduza por diante o ideal de benemerência aqui desfraldado como bandeira, completando-o, ampliando-o, dando-lhe realidade mais vasta como já pensado e ansiado fora.

 

Novas realizações, obedecendo a princípios ideais cristãos, tornarão a fundir todos os nossos irmãos lagartenses, como já foi e começamos a ver, neste momento, de lado os dissentimentos que não hão de poder mais do que o amor a terra, pois que nada prevalecerá sobre a justiça, quando as paixões dos homens houverem passado com o tempo e a verdade se restabelecer por um instinto que nos leva a preferir o bem ao mal, o justo ao injusto, o verdadeiro ao falso.

 

Este pedestal traz a marca de um exemplo e de um estímulo.

 

Há de fazer recordar, para sempre, uma felicidade aqui vivida, prenúncios de novas felicidades que hão de descer e já vêm descendo sobre as terras fadadas do Lagarto…”

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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