Os Gêmeos

As gerações surpreendidas e marcadas pelo golpe militar de 1964 levaram muitos anos procurando caminhos de equilíbrio, que pudessem apaziguar os espíritos. Muitos preferiram, tomados de uma ira incontrolável, a luta armada, alistando-se nos grupos radicais que ensaiaram uma guerrilha romântica, outros entraram pelos guetos e trocaram a lucidez pela fantasia alucinógena mais próxima. Outros, contudo, e em maior número, tomaram a cultura como opção salvadora e conquistaram o itinerário da vida, reinventando ou recriando a realidade, como a corrigir os desvios de uma história aviltada.

Agamenon de Araújo Souza foi, na juventude, um agitador estudantil a cobrar coerência de um Poder ilegítimo, um militante político, a exigir códigos éticos de grupos autoritários, que utilizavam da força para frear os movimentos sociais. Tanto em Aracaju, onde passou parte de sua juventude, como em São Paulo, onde modelou sua formação, Agamenon de Araújo Souza aprendeu a fazer a leitura da história e a dosar sua compreensão dos fatos, para transformá-los em motivos de sua arte de poeta e de compositor, de ator e de diretor, buscando a qualidade de sua produção.

Os Gêmeos (São Paulo: Scortecci Editora, 2006) reúne e expõe uma pequena parte do trabalho intelectual de Agamenon de Araújo Souza, sergipano de Aquidabã, filho de Eurico Souza, funcionário público do fisco e perseguido político, dos velhos tempos de UDN e PSD, que por algum tempo exilou-se em Maroim, para salvar a pele e a família. O livro, de 124 páginas, é todo ele uma manifestação estética comprometida com as experiências anteriores do autor, elaborado numa linguagem que retira do previsível lugar comum, a reflexão sobre os fatos, com todo o poder das circunstâncias pesando sobre a sua consciência.

Nem sempre as experiências e vivências políticas, tão prosaicas, se prestam para a poetização. A poesia é a síntese bela, é a criação onírica mais exigente, e nem sempre fornece o molde para abrigar os fragmentos pessoais, que sobraram dos embates tempestuosos dos confrontos ideológicos. A poesia é expressão única, parte literatura, parte filosofia, sotaque singular que funde as sensações mais íntimas, com os cenários das sobrevivências.

Ao propor uma poesia de rimas, como a fixar o tempo que passou, e a oferecer discursos teatrais, que pressupõe o diálogo cingido pela pantomima dos atores, revisitando ocasos e sonhando auroras, Agamenon de Araújo Souza mostra-se compenetrado, com uma lição literária na ponta da língua, aprendida de cor e salteada, e com a qual passa os olhos e com eles o olhar inquisitorial irresistível, como a fazer o registro único e definitivo de suas memórias de cidadão. Fingidor, como todo poeta, o autor de Os Gêmeos monta uma armadilha que parece, de longe, uma atração fatal, que aos poucos assume outras formas, diversas formas, antes de ser transformada numa salteada desbocada e debochada, como convém a uma rapsódia.

Agamenon de Araújo Souza tem intimidade com as linguagens artísticas, e não iria submeter sua memória ao abecedário de personagens, preferiu renomeá-los com outros nomes, mais apropriados aos perfis conotados nas estâncias da vida, da curta vida de décadas perdidas, sob o travo incontido das censuras, dos patrulhamentos, das reprimendas. O leitor saberá solver, com os olhos fixos, a essência de um momento de criação, quando o autor faz as pazes com sua biografia, sem desmerecê-la com apelos sentimentais, sem retocá-la com pedaços de insatisfação cega. Ao contrário, a vida que passou, tanto quanto a vida que virá e passará, é a matéria prima da reflexão, da aprendizagem, da renovação do compromisso, da reafirmação de que tudo vale a pena, e a alma não pode ser pequena. como ensinou o poeta vestido com seu sobretudo e seus múltiplos nomes.

Permitida a reprodução desde que citada a fonte “Pesquise – Pesquisa de Sergipe / InfoNet”. Contatos, dúvidas ou sugestões de temas: institutotobiasbarreto@infonet.com.br.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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