Carla Apenburg Trindade
Graduanda em Geografia Licenciatura, pesquisadora no Laboratório de Estudos Rurais e Urbanos (LABERUR/UFS) e colaboradora na Rede Dataluta/Sergipe.
E-mail: apenburgct@gmail.com.
Ao se pensar “homens” e “mulheres” quais imagens lhe vêm à cabeça? Barbas, músculos, força e trabalho? Flores, delicadeza, passividade e cuidado? É certo que nossa mente atua através de padrões conhecidos e naturalizados na sociedade, esses são denominados de papéis de gênero.
Historicamente e em diferentes sociedades, o gênero foi vivenciado por meio de papéis, quase sempre, estereotipados, que delimitam e condicionam homens e mulheres a ser e agirem de determinada forma-modelo.
De acordo com o pensamento de Heleieth Saffioti, esses papéis de gênero estão imbuídos de sexismo, uma vez que reforçam as estruturas sociais desiguais entre os sexos, assim, não representando somente uma mera ideologia, mas, também demonstrando as bases societárias em que se ancora nossa vida cotidiana: O capitalismo patriarcal.
No contexto da pandemia do novo Coronavírus não é diferente, as mulheres continuam sendo socializadas para desenvolver comportamentos dóceis, cordatos, apaziguadores, enquanto os homens são estimulados a agir de maneira agressiva por meio da força, revelando o princípio reativo das relações intrafamiliares violentas, intensificadas no período de quarentena e isolamento social. É importante, portanto, compreender, que a crise sanitária e sua repercussão econômica, realça desigualdades, perpassando classe, raça e gênero, intensificando a desestruturação de pessoas, famílias e grupos sociais sujeitos ao desemprego, à fome e a pobreza.
Os contornos dessa desigualdade são sentidos de forma ainda mais intensa nos países sob a formação de um capitalismo periférico – como o Brasil –. Como escreveu Eduardo Galeano em As Veias Abertas da América Latina, os países periféricos valem-se de um gordo substrato para a rapinagem exercida historicamente por países opressores, que se tornam cada vez mais ricos por meio da própria desigualdade.
Ao olhar para a sociedade brasileira, fica nítido que ao longo dos anos não se constituiu um “Estado do bem-estar social”, haja vista que direitos elementares foram negados a boa parte da população. Falta de moradia, alimentação, educação, saúde e segurança pública são algumas das situações bem conhecidas da designada minoria pobre, que inclusive, em sua maioria, chega a somar milhões de brasileiros e brasileiras.
Assim, os contornos neoliberais e ultraconservadores que permeiam a sociedade brasileira, neste momento de crise sanitária, aprofundam a marginalização social de homens e mulheres, por meio do desemprego e do desmonte das proteções trabalhistas e sociais, bem como atua reforçando, até mesmo por discursos oficiais proferidos neste cenário caótico, o encarceramento sexista dos sujeitos nos designados papéis sociais de gênero construídos e aceitos pela moral cristã diretamente ligada ao atual governo.
É certo que, mesmo de forma precária nas famílias pobres, o papel de trabalhador produtivo, historicamente bem delimitado pela divisão sexual do trabalho (DIT), foi destinado aos homens, sendo estes, os responsáveis pelo equilíbrio (ou não) das questões econômicas nos domicílios.
Nesse sentido, à simbiose tratada por Saffioti entre capitalismo e patriarcado, revela o quanto o capitalismo é marcado pela ideologia patriarcal, se retroalimentando através do binômio dominação-exploração, estabelecendo nos polos do poder, posições sociais antagônicas e desiguais de homens e mulheres.
Através dessa atribuição estereotipada ao gênero masculino, o papel hierárquico na família, mesmo que este venha sendo modificado no tempo e espaço, ainda se traduz, diante de boa parte da sociedade ocidental capitalista e patriarcal, na posição de “autoridade” familiar, revelando assim, o poder de mando ao “macho”, em uma das primeiras, e de maior credibilidade, instituições societárias: a Família.
Essa construção também vitimiza os homens, uma vez que os obriga a construir sua subjetividade-objetiva por meio da masculinidade hegemônica baseada na dominação, na crueldade e na falta de empatia como elencado por Paola Ruiz-Huerta, enaltecendo a sua “macheza” seja pela castração de sentimentos ou restringindo sua atuação às responsabilidades de provedores. Dessa forma, a premissa de “O trabalho dignifica o homem” em tempos de isolamento social, home office e agudo desemprego, se torna uma utopia distante e, consequentemente, representa um grande fardo de responsabilidade, culpa e frustração a ser carregado pelos homens atingidos pela crise sanitária, econômica e social atual.
A sensação de “inutilidade” gera uma série de outros sentimentos sexistas e misóginos, que ferem o “ego” das atribuições ditas masculinas, desviando o homem desempregado da função de prover financeiramente a casa e o aproximando de outras ações degradantes que reforçam essa masculinidade hegemonizada: vícios em drogas lícitas e ilícitas, e a própria construção da figura do macho imponente através do uso da força e da violência.
Assim, em tempos de COVID-19, a masculinidade é vivenciada numa corda bamba: alguns momentos tendenciando à destruição de alguns elementos comportamentais aceitáveis aos papéis de gênero masculinos, assim como outros aspectos, também construtores dessa “masculinidade ideal” são consequentemente reforçados, desdobrando-se, inclusive, na intensificação de casos de violência doméstica contra mulheres e crianças no período de isolamento social.
Essa instabilidade na vivência da masculinidade revela a iminência de uma crise identitária que deslancha nos últimos tempos, tanto na esfera econômica quanto social, uma vez que não se dissocia da figura do “homem endividado”. Como elencado por Michel Foucault, um “súdito livre”, que honra suas dívidas.
Por fim, a pandemia global traz à tona o seguinte questionamento: estaríamos caminhando para um momento histórico onde a binaridade de gênero, assim como as posições sociais de homens e mulheres, serão obrigatoriamente desconstruídas? O que será construído a partir de então? Esperamos que as futuras linhas da história, que já estão sendo escritas no presente, desnaturalizem as marcas do verdadeiro vírus social gerador de relações violentas e opressoras entre homens e mulheres, e dos homens sobre si mesmos: o Patriarcado.