Já estão no mercado os mais novos livros do escritor sergipano Francisco J. C. Dantas: Sob o peso das sombras (São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2004) e Cabo Josino Viloso (São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2005). São dois discursos ficcionais competentes, que ajudam a fixar o nome do autor nas páginas da história literária, tanto em Sergipe, onde a ficção foi sempre pobre; e no Brasil, onde a crise de criação parecia não ter fim. Mais do que continuar fazendo seus exercícios de linguagem, Francisco J. C. Dantas experimenta escapar dos cenários onde construiu personagens e estórias, enfeixados nos três livros anteriores. É o que se poderia dizer “uma passagem de tinta”, uma mudança, uma busca, como se falhasse ao autor a certeza de que podia continuar universalizando as sagas sertanejas do nordeste brasileiro. Os autores sergipanos de ficção preservaram, todos eles, os ambientes típicos da região nordestina. Vila de Santa Luzia, de Omer Monte Alegre, Flegelo e Açoite, de Armindo Pereira, Sertão do Boi Santo, de Paulo Dantas, Pau de Arara, de Paulo Carvalho-Neto, guardam estreita fidelidade com a nordestinidade dos romances de José Américo de Almeida, Racquel de Queiroz, José Lins do Rego, Graciliano Ramos. Outros autores nossos, como Ranulfo Prata – Navios Iluminados – e Amando Fontes – Rua de Siriri e Os Corumbas – beberam da mesma inspiração, urbanizando os dramas originários da vida rural de Sergipe. A fonte permanece abundante, oferecendo água límpida ao alcance de qualquer ouvido, como disse o poeta José Sampaio. Em ‘O peso das sombras’, Francisco J. C. Dantas parece galhofar de um tipo postiço de grupo social, pretensamente intelectualizado, tocado pela vaidade, que pode tomar forma em sala de aula, reunião de Departamento, ou qualquer outra rotina acadêmica. Ele chega a exagerar na descrição do personagem Jileu (teria alguma coisa a ver com a expressão, comum entre professores, ‘já leu?’, atualizando os lançamentos literários?) Bicalho Melão, remoendo mágoas, minando com seu fraseado a imagem do desafeto, ao assumir a narrativa na primeira pessoa. O narrador onisciente, onipresente, que conduz a trama de forma dominadora, empresta tanto zelo aos seus personagens que, não raro, se envolve com eles e deixa escapar vestígios de realidade entre as páginas dos livros. Há uma bem e simpática tentativa de conquistar o leitor à integrar o enredo, através de expressões de cumplicidade: “mas, como vêem”, “como viram”, “vejam bem”, “releiam lá em cima o parágrafo inicial”, dentre muitas outras, conduzindo a narrativa sob as vistas comprovadoras dos leitores. O universo urbano da academia não prevalece, Alvide é mais que uma moldura na parede sentimental, é um ponto da história, uma realidade que pode ser reinventada a todo instante, como uma verdade definitiva, da qual não sobram dúvidas. Talvez mesmo pela força lúdica de Alvide é que personagens emblemáticos como Zeca Papão, Cabo Josino, Camerinda Gravatá sobrevivam como fios de um novelo matizado de lições morais. O exator que cobra impostos, o policial que responde pelo destacamento e a professora que domina o saber são personagens recorrentes, em todas as comunidades, cumprindo suas funções clássicas. Tobias Barreto, ao enfrentar a situação desfavorável de Escada, pequena cidade da zona da mata sul de Pernambuco, cercada de engenhos de açúcar por todos os lados, disse que só conhecia a organização do Estado pelo fiscal, que lhe cobrava impostos, e pelo policial, que lhe metia medo. Francisco J. C. Dantas apanha, com precisão cirúrgica, a psicologia dessas pessoas que fazem nome montados nos afazeres locais. Josino Viloso emerge das páginas de ‘Sob o peso das sombras’, para ser guindado a atuar com desenvoltura nas relações e conflitos com os outros, ganhando livro próprio. Seu perfil de legalista, com folha de serviços prestados ao país, reforça a constatação da organização do poder local, conotado por influências de chefes e mandatários, que controlam a vida. Em ‘Cabo Josino Viloso’, o autor parece mais à vontade para estabelecer o ritmo, a cadência, o sotaque de sua narrativa, como um bom, um excelente contador de estórias, atento a qualquer sinal que possa interessar aos leitores. Cabos e sargentos em Sergipe, espalhados pelo interior, viveram sagas fantásticas, que ainda hoje povoam as cabeças de memórias. Sargento Mário, em Pedrinhas, com sua farda retirada do baú, para o desfile de gala, diante de uma população respeitosa, temente, amontoada de receios perante tal autoridade, um ritual de afirmação e de submissão, na síntese marcante de um lugar pequeno e que tem dono, ao qual servem, sem questionamentos. Certa vez, dizem, o Interventor Augusto Maynard mandou saber, em Laranjeiras, com quem estava o chefe político local. A resposta veio prontamente: “Estou com vossa excelência e com seus dignos sucessores.” Tio Melenguê é outro personagem múltiplo, espécie de rei destronado dos contos de fadas, que pode servir a que Francisco J. C. Dantas continue recriando a realidade, com a dicção singular de cada um, com a linguagem preciosa das suas ficções. Neste ano em que o mundo celebra os 400 anos do Quixote, ‘Sob o peso das sombras’ e ‘Cabo Josino Viloso’ têm muito a percorrer, entre os leitores brasileiros, como testemunho do fascínio que a literatura exerce sobre as pessoas. Permitida a reprodução desde que citada a fonte “Pesquise – Pesquisa de Sergipe / InfoNet”. Contatos, dúvidas ou sugestões de temas: institutotobiasbarreto@infonet.com.br.
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