Os tiros também foram em mim e em você

Todos os dias, cerca de 170 pessoas são assassinadas no Brasil. O homicídio é epidêmico em todos os estados. Então por que a morte de uma vereadora do Rio causou tanta comoção? Porque a maioria das vítimas da violência é pobre e preta e Marielle Franco as representava. Ela forjou sua luta política na defesa da vida, e da vida das pessoas mais vulneráveis ao crime.

Mas quem era essa vereadora de 38 anos? Como ela própria se definia, Marielle era mulher, mãe, negra, da favela. Era tudo isso e venceu. Mãe adolescente, teve que adiar o sonho de estudar. Formou-se em sociologia e fez mestrado em administração pública. Resolveu engajar-se nas causas sociais quando uma amiga morreu de bala perdida.

Por dez anos trabalhou com direitos humanos ao lado do combativo deputado estadual Marcelo Freixo, do PSOL, com quem aperfeiçoou a prática da política social. Estava no primeiro mandato de vereadora, cargo conquistado com o apoio de mais de 46 mil cariocas. Terceira mulher negra a ocupar uma cadeira no belo palácio da Câmara Municipal do Rio, foi a quinta vereadora mais votada.

Era neta de um paraibano que foi pioneiro dos 150 mil moradores que hoje habitam o complexo de favelas da Maré, na zona portuária da cidade, onde se fez gente. Marielle Franco deu voz à mulher negra, aos jovens e à comunidade LGBT, que viam nela a sua representante legítima.
Ela incorporava o mandato para, inclusive, denunciar a violência policial. Quando morreu, era relatora da Comissão da Câmara Municipal de Acompanhamento da Intervenção Federal. Temia que os efeitos colaterais da presença do Exército na sua cidade sobrassem mis uma vez para os pobres.

Na véspera da morte, postou no Twitter sobre um crime na Rocinha: “Mais um homicídio de um jovem que pode estar entrando para a conta da PM. Matheus Melo estava saindo da igreja. Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”

No sábado, ela denunciou: “O que está acontecendo agora em Acari é um absurdo! E acontece desde sempre! O 41° batalhão da PM é conhecido como Batalhão da morte. CHEGA de esculachar a população! CHEGA de matarem nossos jovens!”

Na mesma quarta-feira da sua morte, ela encaminhou um artigo para o Jornal do Brasil sobre a intervenção federal, no qual afirma: “Definitivamente a segurança pública não se faz com mais armas. Mas com políticas públicas em todos os âmbitos”.

O artigo foi publicado na sexta-feira e no texto bem redigido por uma socióloga Marielle destaca que o apontamento das favelas como lugar de perigo, do medo que se espraia para a cidade, desperta o mito das classes perigosas. “As mortes têm cor, classe social e território”, observa.
O artigo termina com essas palavras: “É premente a necessidade de monitorarmos esse processo, tendo o cuidado de lutar para que os direitos individuais e coletivos sejam assegurados, para que as instituições democráticas sejam preservadas e sigam autônomas. O contrário disso se revelaria algo bem perigoso em uma sociedade que tem uma tradição patrimonialista pouco afeita ao trato democrático e que tem uma relação histórica violenta com sua população mais vulnerável.”

Meia hora antes de ser assassinada, estava na roda de conversa Jovens Negras Movendo as Estruturas, na Casa das Pretas, na Lapa. Morreu a três quilômetros dali, no Estácio, quando foi covardemente atingida por quatro tiros de pistola na cabeça. O motorista Anderson Gomes também foi morto.

Um parêntese: estranhamente, as balas que os mataram eram de um lote que tinha sido comprado pela Polícia Federal, soube-se depois.
O crime brutal revelou para o Brasil quem era Marielle e o quanto ela representava. O seu assassinato feriu de morte a nossa frágil democracia, porque ela era a representação de uma fração do estado de direito com que sonhamos, onde todos tenham oportunidades, onde os políticos sejam sérios e representem de fato uma causa honesta. Que, em suma, defendam os interesses da coletividade.

Marielle era a representação do político que os brasileiros estão desejando eleger neste ano. Com exceção de uma minoria que odeia pobres, e que por isso se manifesta nas redes sociais contra a vereadora que virou mártir, todos acabamos sendo atingidos pelos tiros disparados na noite de quarta-feira numa rua semidesértica do Rio.

Que as expressões “Marielle, presente” e “Marielle vive” não sejam meras figuras retóricas e sua luta se fortaleça. Mais uma vez quiseram silenciar uma voz, mas a julgar pelas manifestações de indignação no Brasil e no mundo o tiro pode ter saído pela culatra. Oremos!

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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