Palavra cruzada

Tenho uma imensa dificuldade com palavras-cruzadas. Confesso que nunca consegui terminar de preencher uma revista inteira – na verdade, nem uma página inteira. Tenho por hábito o devaneio e nunca consigo atingir a objetividade exigida pelos quadrados contados a serem preenchidos. Perco-me em pensamentos sem fim e não conseguiria responder às demandas tirânicas daquelas revistas nem se tivesse uma página inteira para escrever, quem dirá tendo apenas algumas letras.

Mesmo consciente de tudo isso, não cesso nunca de tentar ir adiante com elas. Outro dia, numa tentativa igualmente frustrada, paralisei diante de uma simples demanda: Existir, dizia a revista, e me dava cinco letras para responder. Minha resposta inicial e automática foi gritar com o papel: impossível existir com cinco letras. Nesse contadíssimo espaço já não caberia, por exemplo, respirar. E como existir sem respirar? Não só o ar sagrado mecanicamente inalado, mas um respirar profundo vez por outra, ou uma respiração ofegante, respiração suspensa. Qualquer dessas reações tão comuns que temos diante da vida mais cotidiana não caberiam no existir proposto pelas palavras-cruzadas.

Quis ainda responder a uma demanda tão imperativa: amar. Mas seriam quatro curtas letras que não preencheriam os espaços insistentemente em branco. Porque mesmo os animais que existem, costumam amar. Não sei se as formigas amam, mas já me disseram que os golfinhos e as araras são capazes de sentimentos muito próximos do amor – e nem vou falar aqui de animais de estimação e suas relações com os humanos. E seres humanos, então, amam sempre, nem que seja o dinheiro ou sua própria imagem refletida no espelho.

Daí me dei conta de que as coisas também existem e não respiram nem amam. Mais impossível ainda se tornou para mim responder àquela pergunta tão tirânica. Recusei-me a preencher aqueles quadradinhos com “viver”, porque as coisas não vivem e mesmo alguns humanos que existem estão bem longe de ter uma vida propriamente dita. Desisti na primeira pergunta. Porque nesse exercício tão inútil do pensar, já escrevi bem 22 linhas e ainda não achei a resposta que me parece mais adequada, impossível, pois, responder em cinco letras.

As palavras não se contêm em ser sozinhas, são gregárias, precisam de outras, de apêndices, de apostos, de frases inteiras para tentar dar sentido ao nosso mundo interno. (Se bem que as pessoas surdas, desconhecendo os sons, criam como que imagens internas para explicar essas coisas que tentamos exprimir com palavras. Porque mesmo a palavra escrita não lhes remete a um som, mas sim à imagem das letras. Achei poético e ao mesmo tempo tão difícil pensar o mundo assim. Conheci um surdo outro dia que me disse gostar de ver as folhas das árvores cair. Gasta tempos e tempos nesse divertimento. E eu quis ter uma imagem para dizer a ele a beleza disso: bastar-se com o olhar. Porque eu passaria linhas e linhas teorizando e falando sobre as folhas que caem das árvores no outono. Ele apenas as olha e tudo isso já está resolvido sem palavras.)

Reclamou-me certa feita um mestre de que eu andava repetindo demais as palavras nos meus textos acadêmicos. E eu fiquei até um pouco envergonhada de tentar lhe explicar que certas palavras não se substituem. Quando eu digo “memória”, não posso dizer em seu lugar “lembrança”, por exemplo. Memória é culto, é mais do que trazer de novo à mente algo que já cessou de existir; é trazer de novo à vida um passado que, na verdade, não cessa nunca, continua, dá ensejo ao presente e ao futuro. Lembrar é muito pouco. Eu, constrangida, me apego a palavras e vou repetindo-as, sem nunca conseguir substituir nenhuma, porque a força própria delas me impede de buscar qualquer outra para colocar em seu lugar.

Daí também minha dificuldade de responder ao “Existir” das palavras-cruzadas. A substituição nunca é completa, porque nenhuma palavra nunca significa completamente a mesma coisa de outra. Ainda que existam no dicionário (e devem existir, creio eu) duas palavras com o mesmo exato significado, a força de escrever cada uma com suas respectivas letras, já lhes atribui algum tipo de diferença nesse significar. Não se preocupem, não vou entrar em discussões semióticas aqui, estou apenas buscando uma desculpa plausível para minha impossibilidade de terminar palavras-cruzadas.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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