Pelo fim das torcidas organizadas

O esporte é o marco inicial do processo de civilização porque cria regras para que se vença o adversário na força sem precisar eliminá-lo. Nenhum esporte diz tanto sobre essa máxima quanto o futebol. O jogo da bola que deve ser empurrada com os pés para dentro de uma meta substitui soldados por jogadores, que representam suas nações, seus clubes ou seleções. Os torcedores, seguidores fiéis e apaixonados, são os cidadãos que constituem essas nações.

Mas o campo de batalha, que deveria se restringir às quatro linhas que cercam o gramado, no Brasil ganhou uma dimensão que há muito extrapolou os limites do civilizado e descambou para a barbárie. Aqui, as nações que deveriam assistir seus guerreiros lutarem para derrotar os adversários sem precisar matá-los estão contaminadas por gangues dispostas a cometer crimes com a suposta desculpa de defender seu emblema e sua camisa.

Essas gangues se chamam torcidas organizadas, grupos infiltrados nas nações que veneram o esporte que estão se matando e causando pânico numa velocidade assustadora. As brigas de torcidas mataram 42 pessoas entre 1999 e 2008 no Brasil. E as vítimas aumentaram a partir de 2009, chegando a 23 mortos em 2012, e a 30 assassinados em 2013.

Uma pancadaria em Santa Catarina encerrou o ano mais violento, fora dos gramados, da história do futebol brasileiro. Na véspera da Copa do Mundo que se realizará agora. No dia 8 de dezembro de 2013, na Arena Joinville, uma briga na torcida interrompeu o jogo entre Vasco e Atlético-PR e deixou marcas negativas para o país. Além de quatro torcedores feridos.
Antes, o torcedor do Santos Márcio Barreto de Toledo, de 34 anos, morreu após ser agredido por cerca de 15 torcedores do São Paulo que o atacaram com barras de ferro em um ponto de ônibus da capital paulista.

Em Sergipe, não tem sido diferente. Nos últimos oito anos, segundo o Ministério Público Estadual, aconteceram cerca de 20 mortes envolvendo brigas entre as torcidas organizadas dos dois principais clubes do Estado, Sergipe e Confiança. Foi o que revelou reportagem assinada por Paulo Rolemberg, no dia 31 de março, no Jornal das Cidade.

"Eu tenho depoimentos muito fortes de como funciona os bastidores das torcidas organizadas do Confiança e do Sergipe. Todas elas zonearam as facções por bairros", disse o promotor de Justiça Deijaniro Jonas. "Em tese, o torcedor adversário não era para entrar na área da torcida rival, mas para desafiar, muitos entram e picham muros e até mesmo arrancam a camisa do torcedor rival, numa forma de intimidação", disse.

A ação de arrancar a camisa de um torcedor adversário teria sido um dos incidentes que acabaram resultando em duas mortes: Edmar Oliveira dos Santos, conhecido como "Eterno Edmar", integrante da Torcida Jovem do Confiança, ocorrida no dia 2 de fevereiro de 2009; e da adolescente Vanessa dos Santos, à época com 15 anos, namorada de um membro da Torcida Esquadrão Colorado do Sergipe, assassinato ocorrido em 6 de abril do mesmo ano.

"Percebe-se que muitos desses delitos são motivados por vingança, ódio e intolerância, numa contínua ciranda de agressões", constatou o promotor, observando que as convocações para os confrontos são postadas nas redes sociais. E os confrontos se estendem a outros estados.

Em janeiro de 2011, na abertura do campeonato alagoano com o clássico CRB e CSA, integrantes de torcidas organizadas de outros estados foram chamados para reforçar as torcidas locais no estádio rei Pelé. O sergipano Adriano Freitas, 20 anos, estava em Maceió com colegas da TEC – Torcida Esquadrão Colorado, do Sergipe, para ajudar a torcida do CRB, que tem as mesmas cores do time de Aracaju.

Houve confronto das torcidas Mancha Azul, do CSA, reforçada por membros da torcida Inferno Coral, do Santa Cruz, de Recife, contra um grupo de torcedores da Comando Alvirrubro, do CRB. Adriano foi cercado, espancado, baleado, levou golpes de barras de ferro e teve seu corpo largado dentro de um carro.

Em setembro do ano passado, em Arapiraca (AL), torcedores da torcida organizada do time local, a Mancha Negra, se envolveram em uma confusão com torcedores da TEC, que foram assistir seu time jogar contra o Tiradentes local. De acordo com a Polícia Militar, cerca de 15 torcedores da torcida organizada do Sergipe seguiam para o estádio em uma van quando encontraram com os torcedores alagoanos. Houve bate-boca, provocações e agressão física. Alguém sacou um revólver e deu dois tiros contra os integrantes da Mancha Negra, ferindo um torcedor adversário.

E no dia 12 de março, em Itabaiana, Sergipe e Náutico fizeram o jogo de ida da Copa do Brasil. A equipe de Aracaju venceu por 1 a 0. A partida ficou marcada pelo fraco futebol e pela prisão de seis torcedores da organizada do time recifense após uma briga na arquibancada.

São inúmeros casos para serem contados aqui e em todo o Brasil. E não há remédio para se prevenir ou curar esse mal senão acabar com as torcidas organizadas, começando por punir os clubes toda vez que torcedores provocarem atos de violência. Depois de um incidente no ano passado, na porta do estádio de Carmópolis, entre torcedores do Sergipe e do CSA, quando quatro ficaram feridos, a Polícia Militar decidiu impedir o acesso das organizadas aos jogos. Mas será suficiente?

Na Europa, os torcedores de futebol hoje dão exemplo de civilidade, ao ponto de tirarem fotos com jogadores de times adversários mesmo após um fracasso, como aconteceu em recente embate entre o Real Madri e o Manchester United, quando torcedores do eliminado time inglês assediaram o craque Cristiano Ronaldo.

Mas nem sempre foi assim. Na própria Inglaterra existiam os temíveis hooligans, responsáveis pela tragédia do Estádio do Heysel, na Bélgica, durante a final da Taça dos Campeões Europeus de 1985, entre o Liverpool da Inglaterra e a Juventus da Itália. O episódio resultou em 38 mortos e um número indeterminado de feridos, o que resultou na proibição de todas as equipes britânicas participarem em competições europeias por um período de cinco anos. Foi um santo remédio civilizatório.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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