Peste, Cólera e panelaço

Em tempo de Corona vírus, dois textos me vêm à mente: “A Peste”, de Albert Camus, e “Morte em Veneza”, de Thomas Mann.

Camus narra o surto de uma terrível epidemia de Peste Negra numa pequena e tranquila cidade chamada Orã, cinzenta e pacífica, cujo povo curte a vida frugalmente, criando filhos e desenvolvendo seu labor diário, quase perdida no tempo e esquecida no noticiário.

Em Orã vivia um médico, Bernardo Rieux, que, por primeiro, passou a perceber um crescimento de doentes febris, evidenciando que grassava uma pestilência crescente, em óbitos acima do normal e corriqueiro.

À morte dos humanos acompanhava também um crescente aparecimento de ratos mortos, algo a evidenciar que havia um elo comum a suspeitar desses roedores.

Tratava-se de Peste Negra, moléstia nunca imaginada em Orã e até por Bernardo que via a contaminação espalhar-se incontrolavelmente, um desafio a seus cuidados, e, sobretudo, a convencer as autoridades locais para a tomada de providências urgentes e radicais, afinal era preciso cuidar dos enfermos e afastá-los do convívio dos sãos.

Viria por consequência a decretação de quarentena, uma vez que se assim não fosse feito logo a peste mataria 50% da população.

Camus narra o drama terrível da morte, setecentos corpos por dia, de homens e mulheres, velhos e crianças, entes queridos sendo privados até de um sepultamento digno, as pessoas sendo mantidas isoladas quais prisioneiros em suas casas, quartos e cubículos, e os cadáveres sendo enterrados em valas comuns, cobertos de rala camada de cal, sem esperança e com desolação, sem cura e sem imunidade.

Depois, como toda epidemia, a doença como surgiu, sumiu, incubou, desapareceu, restou a alegria de quem viveu e sobreviveu, a Peste restando escondida, debelada como surto, esquecida mas não vencida, a morte sempre vindo, em surpresas sempre esperadas.

Se na Peste de Camus o drama e a dor se fazem cruéis, por terrível e assustador, algo não recomendável por leitura nestes tempos de Pandemia de Corona Vírus, quando o mundo e não Orã apenas se vê ameaçado com perspectivas bem piores, em termos de miséria e sofrimento, Thomas Mann em Morte em Veneza faz da Cólera e não da Peste um mero cenário para dramas existenciais, consubstanciais ao estético, a fixação poética, permitindo até o imaginar senão o degenero, a paixão platônica de um velho caquético por um adolescente de rara beleza.

Poder-se-á pensar que há laivos de pedofilia na atração de Gustav Aschenbach, escritor alemão consagrado e respeitado além fronteiras, pelo jovem polonês Tadzio, um adolescente de rara beleza.

Gustav Aschenbach apaixona-se pela beleza e requinte do menino encarando-a irresistivelmente como uma imagem perfeita da qual não pode se afastar nem se aproximar, enquanto meta espiritual e sonho de formosura.

Quanto ao Cólera, a moléstia grassa em Veneza, enquanto as autoridades abafam a notícia do surto para não espantar os turistas mantidos sem acesso ao noticiário, por barreira idiomática, e a contaminação crescendo inclemente, atingindo a todos.

Aschenbach, homem ilustrado, ao perceber o surto da doença, resolve ir embora, tenta avisar do perigo à família do garoto, não conseguindo sair de si mesmo, até para isso, incapaz de ir além da atração irresistível que o paralisa e tolhe o agir.

Há um contexto ditado pelo acaso que impede a sua fuga do cenário doentio, contaminado. Suas bagagens se extraviam, eis a oportunidade do homem ilustre ficar, não seguir viagem, contemplar de novo Tadzio, deixar-se atrair por aquela beleza que o paralisa.

Morrerá na praia do Lido, sozinho, após esboçar em delírio um último aceno para a sua platônica atração, que não o percebe, indiferente.

Se na Peste de Camus os sobreviventes em quarentena rugiam, choravam, cantavam e gritavam nos seus cubículos aprisionados, e se em Veneza, Aschenbach preferiu deixar-se morrer infectado sem correr do sonho estético, sua razão maior de existir, no nosso viver em prévias de ameaças de corona vírus, e muita vontade de nada levar a sério, só sorrir, e se divertir, batemos panelas, prós e contras, o governo, a todo governo, qualquer governo, que nunca agrada.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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