Na semana passada tratamos sobre alguns aspectos técnicos incorretos no projeto de revisão do novo Plano Diretor de Aracaju, dentre os quais citamos a estranha situação em que, além de existir um coeficiente de aproveitamento máximo para a Zona de Adensamento Restrito (que é a zona de expansão), este é menor que o coeficiente de aproveitamento único do município, assunto que começaremos a aprofundar neste momento.
Supremacia do interesse público sobre o interesse particular e direito de propriedade
A propriedade de um terreno (bem imóvel) dá ao seu titular o direito de construir sobre este. Este direito não é ilimitado e submete-se à supremacia do interesse público e à finalidade social da propriedade. Dentre estas limitações temos os afastamentos, recuos, coeficientes de ocupação e de permeabilização. Após a observância destes limites, no terreno líquido resultante, poderão ser efetivadas edificações, que também sofrem controle pelo poder público no tamanho da área construída. Estas limitações são especificadas tanto pelo coeficiente de aproveitamento quanto pelos gabaritos (altura máxima de uma edificação).
Como vimos, o coeficiente de aproveitamento nos diz qual é a relação entre a área construída de um imóvel e a área deste (artigo 28, §1º, do Estatuto da Cidade).
Assim, em um terreno que tem 1000m² de área líquida e 1000m² de área edificada, verifica-se que foi utilizado um coeficiente de aproveitamento de 1,0, resultado da divisão da área construída pela área do terreno.
Quanto maior é a área construída em relação à área do terreno maior será o adensamento construtivo, levando à verticalização da cidade, com implantação de prédios e, consequentemente, com o aumento também do adensamento populacional. O município, titular da política de desenvolvimento urbano, tem a responsabilidade de garantir que não haja sobrecarga da infraestrutura e serviços urbanos com este adensamento, pois lhe compete garantir a qualidade de vida da população.
Direito de construir, coeficiente de aproveitamento básico (único) e zoneamento
Dentro da sua função de controlar quanto pode ser construído em um terreno, o município deve especificar um limite a este coeficiente de aproveitamento. Este limite do direito de construir é delimitado pelo coeficiente de aproveitamento básico.
O adensamento construtivo e populacional afeta a infraestrutura e em um município nem todas as suas regiões tem a mesma qualidade e quantidade de infraestrutura e serviços públicos disponíveis, sendo por isso, também dentro do plano diretor, dividido em macrozonas que variam de acordo com a disponibilidade dessas infraestruturas. Assim, em Aracaju, temos a Zona de Adensamento Preferencial (ZAP) com boa infraestrutura; a Zona de Adensamento Básico (ZAB) com falta de infraestrutura e a Zona de Adensamento Restrito (ZAR) com nenhuma ou pouca infraestrutura.
Desta forma, se o fundamento para o limite do direito de construir é a capacidade da macrozona de suportar o referido adensamento sem impactar as infraestruturas existentes (artigo 28, §3º, do Estatuto da Cidade) este limite deveria ser diferenciado para cada zona, entretanto, no Plano Diretor em vigor e na proposta do novo Plano Diretor, este direito de construir teve seu limitador, ou seja, o coeficiente de aproveitamento básico, definido de maneira uniforme para todo o território do município.
No Plano Diretor atual este coeficiente de aproveitamento básico (único) está estipulado em 3,0 e no projeto de revisão, em discussão desde 2005, hoje na Câmara de Vereadores na iminência de ser aprovado, está estipulado em 2,0 (artigo 111,§1º, do projeto do novo plano diretor de Aracaju).
Deve ser observado também que o coeficiente básico, quando é o mesmo para todo o município denomina-se coeficiente de aproveitamento único (artigo 28, §2º, do Estatuto da Cidade).
O coeficiente de aproveitamento único igual a 2,0 significa que poderá ser edificado naquele imóvel do exemplo acima, com 1000m² até 2000m² de área construída (2000m²/1000m²=2,0). Atualmente este patamar seria de até 3000m² (coeficiente de aproveitamento único vigente = 3,0).
Solo criado, coeficiente de aproveitamento máximo e contradições
Feitos os esclarecimentos acima, vamos ao ponto polêmico. Este limite do coeficiente de aproveitamento básico (ou único) pode ser ultrapassado em determinadas circunstâncias, mas, sujeito a outro limite superior: o coeficiente de aproveitamento máximo: “O plano diretor poderá fixar áreas nas quais o direito de construir poderá ser exercido acima do coeficiente de aproveitamento básico adotado, mediante contrapartida a ser prestada pelo beneficiário” (artigo 28, “caput”, do Estatuto da Cidade e artigo 8º, XXXVI, do projeto do novo Plano Diretor de Aracaju);
Como se deduz do explanado acima, o coeficiente de aproveitamento máximo, quando existente, sempre será maior que o coeficiente de aproveitamento básico/único, pois este delimita o direito de construir e aquele, a possibilidade de edificar acima do direito de construir, conhecida como solo criado.
O solo criado somente poderá ser implementado em áreas onde haja infraestrutura suficiente para suportar esta sobrecarga causada pela superadensamento além do direito de construir e este excesso, delimitado pelo coeficiente de aproveitamento máximo, é oneroso. No texto atual do projeto da revisão do Plano Diretor consta que o direito de construir na ZAR é limitado a duas vezes à área do terreno (coeficiente de aproveitamento único = 2,0), ou seja, no imóvel que exemplificamos acima, de 1000m² de área líquida será possível construir até 2000m² de área edificada.
O texto do novo plano diretor estabelece coeficiente de aproveitamento máximo para a ZAR no valor de 0,4 em dupla contradição.
A primeira contradição: a norma estaria afirmando o seguinte: o direito de construir pode alcançar até duas vezes o tamanho líquido do terreno, no entanto, o limite máximo e oneroso para construir é de 0,4. No caso do exemplo dado (terreno de 1000m²), se este fosse situado na ZAR, é como se o município permitisse 2000m² de área construída, mas, ao mesmo tempo, limitasse esta construção a apenas 400m². Isto é ilógico, pois em vez do município estabelecer o solo criado (que é estabelecido além do direito de construir) está inventando um novo instituto – o solo descriado, pois, ao permitir o direito de construir com coeficiente de aproveitamento único 2,0 está, simultaneamente, de forma indevida e contraditória, limitando o direito de propriedade. Desta forma, ao invés de arrecadar recursos, terá que indenizar o proprietário pelo estabelecimento do coeficiente de aproveitamento máximo em 0,4 e do único em 2,0, pois está limitando 60% do direito de construir inerente à propriedade e estipulado pela própria municipalidade. Isto obviamente implicaria na não aplicação pelo município do instituto do coeficiente de aproveitamento e, consequentemente, no descontrole do adensamento construtivo e populacional.
A segunda contradição diz respeito ao fato de que nem na ZAR nem na ZAB, por não haver infraestrutura suficiente, poderia se falar em solo criado e, em razão disso, o limite do direito de construir (coeficiente de aproveitamento básico ou único) não poderia ser alargado.
Coeficiente de aproveitamento é tão importante nessa discussão do plano diretor que continuaremos este assunto nos próximos artigos antes de passarmos para outros pontos importantes.