Estamos a viver a prévia de uma eleição para a escolha de um novo Desembargador. Ela é o fruto de uma excrescência jurígena, verdadeiro despropósito anarco-sindical, inserido espertamente na nossa lei maior, como de um necessário “quinto constitucional”, para oxigenar e renovar o nosso poder judiciário.
Entendem os nossos legisladores, isto desde longas datas, que numa corte de profissionais da magistratura, de gente que ingressou e fez carreira mediante provas, títulos e especialização judicante, deve-se inserir quem na vida e na profissão só fez advogar.
E os advogados, como os rábulas de antanho e desta lei que vem de mesmo remoto escombro, têm por missão e desassombro, pleitear, requerer, batalhar, chicanear, mistificar, fazer o impossível para defender inclusive o indefensável, aí incluídos o perdão para o seu cliente. E o cliente para o seu advogado sempre é e será, no todo ou em parte, inocente ou boa gente; aí inseridos os estupradores, torturadores e malfeitores de todos os extremos inaceitáveis.
Neste particular de degradação ou de folclore do múnus advocatício, estou a lembrar do causídico Leopoldo Heitor ressuscitando a milionária tcheca Dana de Teffé nos confins do leste europeu, cujo corpo sumiu e jamais apareceu, 50 anos passados, e daquele seu colega não tão fatídico quanto eloqüente, que por defesa mais recente de um seu cliente, afirmava com requintes sérios sem acintes, ao vivo e em cores, possuir um canal interlocutório com o próprio Deus. Ou seja, nada que combine com a judicatura, que por premissa fundamental deve respeitar aos homens e a Deus.
Dito isto em cores assombrosas e lombrosas, mas que faz parte do labor meritório de um advogado, com mais ou menos excesso, entendo por resumo que um advogado brilhante deveria permanecer advogado, jamais ser um magistrado.
Não, não se trata de uma mera permuta de carreiras jurídicas, de capelos ou de becas. Não podemos imaginar que numa mesa de decisão possamos permutar funções e atribuições, com seus arrimos e intenções.
Um magistrado não pode ser imaginado como um mero ocupante de uma mesa de decisão, que tem os lados ocupados pelas partes, aí incluído o Ministério Publico como fiscal da lei, na qual por um escarro legal, esteja previsto um joguinho de mudanças de cadeiras e de misteres.
Pensar nesta permuta como necessária, mesmo que diluída num “quinto constitucional” é tão irreal como surreal vem sendo a discussão e o processo como isto se processa. Um procedimento deletério, verdadeiro despautério, e aí eu não falo de parentesco, de querer bem ou mal acunhado, porque ninguém é culpado de ser pai, filho, irmão, tio ou cunhado, muito menos um qualquer apadrinhado. Aliás, muita gente pode até externar com maior ênfase a velha frase repetida: “Quer o parente pra você?”.
Portanto o meu assunto não é parente, como não fora no passado, no tempo em que muita gente achava que isso era uma purulenta intumescência.
Intumescente para mim é verificar que ninguém pensa em lancetar o tumor e a ferida, cobrando dos candidatos a Desembargador uma comprovação fundamentada em prova, em títulos e em conhecimento, do notório saber jurídico do advogado a ser ungido como magistrado.
Prefere-se transformar uma coisa que deveria ser um verdadeiro apreciar de mérito, num mero pleito, com direito a slogans, cabalas, santinhos, showmícios e jantares, todo tipo de dares-e-tomares, tudo feito por todos, e negado também por todos. Ou seja, vira uma disputa de gostos, cores e amores, uma espécie de candidatura a comodoro de dancingclub, com todos os horrores de falta de escrúpulo e excesso de espertezas.
E assim, eu sou capaz de afirmar que muita coisa mudaria se existisse uma prova qualquer, de português ou de juridiquês que o fosse, com direito a divulgação de notas e incompetências. Ver-se-ia a inapetência de muitos e a competência de outros. E a sociedade aplaudiria com menos zombaria o douto vencedor.
Mas não é assim. E eu me permito deplorar deste processo. Acho que é porque eu venho da Universidade, onde ingressei e subi mediante concurso público de provas e de títulos, embora fossem tantos e muitos os que ali ingressaram sem provas e outras contraprovas. Mas isso é outra estória; medíocre por sinal. Igual a esta eleição de Desembargador.
Acho tal eleição um mecanismo deletério para escolher alguém da maior estatura e responsabilidade. Esta eleição seria uma achega importante numa escolha de Rei Momo, de Rainha do Milho ou de Papai Noel; jamais de um Desembargador.
Esta votação de coleguinhas é uma verdadeira demagogia; um escândalo, se fôssemos um país sério. E olhe que eu não estou falando de parentes, repito. Porque há parentes e parentes. Isto para mim é que é bobagem. Há parentes que nessas coisas melhor seriam se não o fossem. Mas isto também é outra estória, com direito a mais reprimendas que comendas. Não interessa.
O que interessa é o aviltamento do julgamento do mérito, ensejando denúncias e furdúncias.
Ah! Mas a lei está assim! Mais uma razão para dizer que está tudo errado. É um resquício atrasado que suscita clientelismos de compadrios e apaniguados.
E o doloroso é saber que tais coisas não empolgam os ardorosos pregadores de mudanças, que deviam sem tardanças promover uma discussão ampla geral e sem prejulgamentos de mal-entendidos. Afinal, o mérito deveria sempre nortear as ações públicas e pessoais.
E neste particular, soa estranho e muito estranho por tacanho, imaginar uma promoção por “mérito”, quando é somenos uma promoção por “escolha”.
Mérito é prova; discursiva, dissertativa e subjetiva. Mérito é eficiência, é fruto de estudos, de trabalhos publicados, de cursos realizados e ministrados, é produção intelectual, aferida, conferida e referida, jamais um resultado de um conciliábulo obscuro e imperscrutável como sói as promoções ditas por “merecimento”.
Chamem de outra coisa, jamais de merecimento. Porque um merecimento deste tipo é mais medíocre que qualquer nomeação por “cansaço”, ou por antiguidade, como na lei está prevista também, onde se nivela um mérito rejeitado por pura perseguição, com o demérito de quem anquilosou, mas sobreviveu.
Enfim, eu só sou a favor do mérito. E mérito pra mim tem que ter prova; aferição documental de conhecimento.
Dia virá que será assim. Quem pensaria no passado que até uma Prefeitura no inferno da pedra seria obrigada a realizar concursos de provas e títulos para contratar um gari?
Pois é! Um dia chegaremos aí. Neste dia o mérito vencerá o demérito e a esperteza. Enquanto isto não chega, lamentemos as mudanças sem mudanças. É uma coisa de inércia. Uma inércia pior do que a de um navio. Alguém já tentou parar um navio em pleno curso?
Só para ilustrar e usando o mote do navio, lembrei de uma página belíssima de Les Travailleurs de
Se hoje o navio pontua assim, que o mérito seja aferido também assim. Com velas, com remos ou com turbinas o barco prosseguirá indiferente aos que dele caem ou que o contestam. Coisa do mérito de cada um, inclusive do navio.
Acho, como passageiro, e invocando o direito de possuir a minha verdade, que este tema do mérito deveria ser melhormente discutido pela sociedade. Não é assunto apenas para simples bacharéis. Nem para tantos gafanhotos, só para lembrar Tobias, o Barreto que vira tantos e quantos, e preferia pensar como alemão para crescer pernambucano.
Acho que sem querer ser Kantiano, mas preferindo uma vizinhança Kafkiana, que a sociedade deveria se inserir num longo processo. Um processo longo de reformas, com direito inclusive à oxigenação da magistratura, inserindo na sua inamovibilidade, uma condicionante temporal que forçasse a transferência e a necessária substituição por períodos de tempo bem definidos, impedindo a eternização de alguns e o esclerosamento de outros.
No entanto o que se vê são lágrimas vertidas e até espertezas renhidas para parar o tempo e o cutelo da aposentadoria compulsória, como recentemente se tentou engendrar uma tese tão fescenina quão libertina, querendo dar um rabo de arraia no tempo, impedindo o tempo de passar.
E o tempo passa. E o tempo sempre passa, porque “a soma dos ângulos de um triângulo não depende da cúria”, nem da incúria do humano. E assim
Assim, se este país fosse mais sério, menos irônico e pouco loquaz, já se teria jogado no lixo da história esta cláusula que o mofo deu, mandando os advogados se restringirem ao seu alto e venerando mister como operadores de Direito.
Já se teria acabado também este desvio funcional de Promotores de Justiça virarem, por uma penada de colegas, juízes e Desembargadores. E até os Tribunais de Contas poderiam estar menos cuspidos em praça pública.
Quanto aos atuais advogados que estão candidatos a Desembargador, eles não têm culpa alguma, tendo parentes ou não.
Se eu fosse advogado eu não iria me meter nesta eleição porque seria reprovado no voto sem compaixão. Ia perder feio. E “feio é perder”, como dissera Paulo Maluf em outras eras. Já se fosse por concurso, eu tentaria até me meter. Poderia não ganhar, mas não faria um papel feio. Feio é perder um concurso, digo eu, sobretudo ficando na rabada. Mas isso é outra estória, de quem não teve parente nem votos pra se socorrer.
Por fim e chegando ao fim, volto-me à pergunta título: por que não eleger o mérito?