PORQUE NATAL
Araripe Coutinho
Quando eu tinha três anos também não era feliz. A vida já tinha me dado um baque tão grande, e eu nem imaginaria que aquele fusca que me deixou no orfanato em Magé com meu irmão Moacir, pudesse mudar a minha vida para sempre. Era um entardecer estranho e só me recordo que após meu pai nos deixar no pátio do orfanato, chorávamos loucamente, porque ali tudo era feio e estranho. Haviam dois velhinhos que cuidavam das crianças ali depositadas.
Mas nem eu sabia. Era natal. Como a inocência mata, anos depois eu vim saber que aquela tarde era um dia de natal. Anos depois, perguntei ao meu pai, um homem franzino com expressões de que tudo ele resolve, como é que poderia deixar uma criança no dia de natal, num orfanato, no interior do Rio de Janeiro. Ele confessou: era o único dia que o fusca podia levar vocês meu filho.
Com o passar do tempo, até hoje lembro nitidamente, fui raptado por um ovni que me pegou no pátio imenso do orfanato e me levou para o universo desconhecido. Foi uma das experiências mais fantásticas que um garoto podia ter. Desaparecido há 3 anos foi manchete no Jornal Nacional com Cid Moreira e fui encontrado no aeroporto do Rio, – um verdadeiro escândalo! Ou seja: estava eu diante de discos voadores, ao que me lembro criaturas hiper evoluídas, que me davam drops para eu me manter sem dor de ouvido e etc na nave que até então me levou às alturas.
Dali nasceria um menino sibite, onde todos que chegavam no orfanato se apaixonavam. Eu era o mais inteligente, o mais engraçadinho, o mais tudo. Dançava, lia a bíblia, declamava poemas e com os olhos abugalhados ia sendo levado pelos visitantes. Foram muitas idas e vindas, até que chegava, de novo, o próximo natal. Todos queriam o menino do disco voador.
No entristecer do orfanato de Magé, não poderia ficar mais crianças que não fossem órfãs. Como se nós tivéssemos pai e mãe. Minha mãe, por exemplo, só foi uma vez nos ver. Com a vizinha dona Belinha, ela chegou pela estrada férrea, onde tinha que passar por um pontilhão. Trouxe maçã, chocolates e biscoito de suspiro. Ai, foi uma alegria ver minha mãe. Uma indígena de Belém, cabelos pretos lisos e um olhar tão comovido! Como ela poderia ter deixado os filhos ali? Não durou muito a visita. Em meia hora minha mãe resolveu, beijar a nós dois, eu e meu irmão e partir de novo, rumo a REFSA, onde o trem passaria em pouco tempo.
De novo o chororô. Mãe! Mãe! Mãe! E lá ficou eu e meu irmão descompensados. Naquela mesma noite, tiver a maior dor de ouvido da minha vida. Gritava, chorava até que me levaram para o hospital em Magé. Pronto! Uma gota e estava já sem dor. Eu nunca esqueci aquele dia fatídico. Na estrada que dava para Santo Aleixo, resolvi um dia ir atrás da minha mãe, e fugi do orfanato que eu odiava. Passei um dia por entre as goiabeiras que brotavam de cair, e não achava nunca a estação de trem que me levaria à Vila Kennedy, em Bangu, onde morava minha mãe na casa de número 11.
Ao voltar ao orfanato apanhei feito um toicinho. E fiquei de castigo porque havia fugido. Àquele instante eu percebi que não tinha mais a poesia da infância. Já era um menino velho. Fiquei mais de um mês amuado num canto. Aquele riso, aquela criança que falava pelos cotovelos havia se perdido em algum lugar de Santo Aleixo. Era o que Rilke tinha previsto “não acredites que o destino seja mais do que a infância e do que nela contém.”
Vieram vários natais e eu amava ganhar presentes, brinquedos, bolos e balas. Até que uma família rica de Magé se apaixonou por mim. Era um senhor lindo de mais de 1,90m, elegante, de nome Armando Botelho Pacheco, que virou meu padrinho e resolveu me batizar, eu já grande, na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Piedade.
Era um amor tão grande do meu padrinho por mim, que compensava tudo que eu havia supostamente perdido. Sempre era natal perto dele. Mas um dia, as crianças tinham que ser devolvidas ao orfanato. E lá fui eu de novo. E de novo o chororô. Agora só podia ir para casa das famílias com a autorizaçãodos pais legítimos, Nem meu pai nem minha mãe apareciam nunca. Ali fui ficando, cheio de lombrigas, tosse coqueluche e sarna. Nunca pude me esquecer do nome Meticoçan, um remédio pra coceira.
Até que um dia, chegou de novo o natal. E meu padrinho foi me buscar. Eu estava radiante: peru, guaraná, presentes, andar de carro, dinheiro, o carinho das tias Dalva, Vera , Sônia, Nilda e Romilda e o amor de toda a rua Comendador Reis. Passaram-se muitos anos assim. E eu nunca entendi porque ainda hoje gosto tanto de natal.
Passada as festas, meu padrinho tinha que me trazer de novo para o orfanato. E de novo o chororô. Um dia, ele me deu um caminhão enorme, só eu tinha! E depois um velocípede – era uma festa para os outros meninos. Ao me deixar naquela tarde os olhos do meu padrinho encheram-se de lágrimas. No canto da boca ele disse, já vou meu amor. No natal a gente vem te buscar.