Posse de Carlos Ayres Britto no TSE
Araripe Coutinho
Depois de chegarem ao mais alto cargo do país, o Supremo Tribunal Federal(STF), os Ministros Carlos Ayres Britto e Joaquim Barbosa assumiram a Presidência e Vice do Tribunal Superior Eleitoral. Duas coisas chamaram a minha atenção, em particular. Primeiro a grandeza com que todos saudaram o novo Presidente Carlos Britto, sergipano de Propriá, enaltecendo suas qualidades pessoais e públicas, com destaque para sua humildade e posições firmes em todo o processo de decisões nacionais. Segundo, a quantidade de amigos de Sergipe que foram até Brasília para saudá-lo, o Carlinhos, aquele professor de direito constitucional da Universidade Federal de Sergipe, do Tribunal de Contas, do Ministério Público, da Academia Sergipana de Letras.
Centenas de pessoas foram cumprimentar o Ministro-poeta, além das principais autoridades do seu Estado como o Governador Marcelo Déda, os ex-governadores João Alves Filho e Albano Franco, Edvaldo Nogueira, parlamentares, governadores de Estado, Presidentes da Câmara, do Senado, líderes religiosos e artistas. Carlos Britto, um esgrima do pensamento, estava sereno e leve. Marco Aurélio, Ministro que passou a Presidência para ele disse que era um momento de júbilo. Nunca o TSE se revestiu de tamanho brilho e beleza. Foi uma noite singular. Ainda chamado de Carlinhos por muitos nos discursos, pôde-se ver ainda o discurso de Cezar Britto, Presidente do Conselho Federal da OAB incendiar o plenário de grandezas.
Em seu discurso Carlos Britto enalteceu as qualidades do Vice, Joaquim Barbosa, um mestre em elegância e ações, além de ser, à olhos vistos, um homem de raro trato e supremo entendimento da vida e do mundo.
A seguir reproduzimos o discurso, na íntegra do Ministro Carlos Ayres Britto. Dono da palavra e da poesia, um homem de grande fé, grandes amigos, um destino de raro tear.
“Maquiavel dizia não bastar ao governante a “virtu”, entendida esta
como o conjunto das qualificações subjetivas que tornam o ser humano
bom, honesto, devotado à causa púbica.
Era ainda necessário possuir a “fortuna”: vale dizer, a sorte, a
ventura, o fado, a estrela, enfim. Talvez por isso, Napoleão, bom
leitor que era e até mesmo analista de “O Príncipe”, não deixasse de
perguntar sobre todo e qualquer general que lhe fosse indicado para
compor os quadros do seu Estado-Maior: “ele tem sorte”?
Pois bem, assim começo este discurso, não para falar que sou um homem
virtuoso, porque o reconhecimento da virtude em cada um de nós é juízo
alheio. Somente pode vir de fora para dentro, e não de dentro para
fora. Mas sou um homem extremamente afortunado, faço questão de dizer.
Um homem de extrema sorte, por chegar à presidência deste Tribunal
Superior Eleitoral na excelente companhia do vice-presidente Joaquim
Barbosa e do corregedor-geral Ari Pargendler, esses dois ministros em
cujas personalidades se mesclam, no mesmo tom, o caráter sem mácula e
a notabilidade do saber jurídico. Uma grande experiência profissional
e o mais luminoso espírito republicano.
Digo mais: chego à presidência desta Casa Especializada de Justiça em
verdadeiro estado de graça, no sentido de que: primeiro, sucedo a um
presidente organizado, incomumente operoso e de inteligência
fulgurante, que é o ministro Marco Aurélio; segundo, por ser
especialmente honroso e desafiante poder seqüenciar esta boa fama da
Justiça Eleitoral: a fama de se postar como o ramo do Poder Judiciário
que mais se caracteriza pela sua efetividade; ou seja, ramo judiciário
que mais celeremente cumpre esses dois fundamentais misteres para a
qualificação de toda a vida política brasileira: o mister
administrativo de planejar, instruir, fiscalizar e cabalmente
realizar eleições gerais, para em seguida lhes apurar o resultado e
diplomar os candidatos eleitos; depois, o mister jurisdicional de
resolver os conflitos advindos de todo esse democrático certame. Tudo
na mais alentadora perspectiva constitucional do respeito à soberania
do eleitor, da pureza ético-isonômica do processo competitivo e da
autenticidade do regime de representação político-eletiva. Regime que
não é outro senão o da democracia indireta ou representativa, nos
termos do parágrafo único do art. 1º, combinado com o caput do art. 14
da nossa Constituição.
Com efeito, é preciso falar cada vez mais de qualidade de vida
política para o nosso País. O que requer, de um lado, a eterna
vigilância contra aqueles políticos que não perdem oportunidade para
fazer de sua caneta um pé de cabra e, de outro, valorizar e
valorizar por modo superlativo; os que tornam a política a
mais essencial, a mais bonita, a mais realizadora de todas as vocações
humanas: a vocação de servir a todo o povo. A abertura devocional para
o serviço da coletividade por inteiro, a todo tempo, que o verdadeiro
político é o mais imprescindível dos cidadãos. Se é pela religião que
se serve a Deus, a mais sublime de todas as instâncias espirituais, é
pela política que se serve à pólis, a mais relevante de todas as
instâncias temporais ou seculares. Mas os dois tipos de acompanhamento
crítico a exigir da Justiça Eleitoral postura hermenêutica
decididamente pós-positivista, para entendermos de uma vez por todas
que os princípios constitucionais são normas, e, como tais, dotadas de
aptidão para resolver conflitos em concreto.
Postura hermenêutica de rigor científico, nunca usurpadora da função
legislativa, ressalte-se, na medida em que os conteúdos de tais
princípios se encontrem na Constituição mesma. O que nos tem
possibilitado, a nós magistrados, entre tantas outras medidas de
saneamento dos costumes políticos brasileiros, cobrar fidelidade dos
candidatos eleitos a seus partidos e à própria compostura ideológica
do País, desenhada esta nas pranchetas de cada eleição geral. É por aí
que se inicia todo reclamo de autenticidade representativa. Todo
empenho de “arrumar as malas para o infinito” da nossa maturidade
institucional, como diria o poeta maior da língua portuguesa, Fernando
Pessoa.
Acresce que “o ser das coisas é o movimento”, já dizia Heráclito, o
grego de Éfeso, fundador da Escola Jônica. Movimento que a Democracia
nunca deixa de acelerar no plano das idéias e dos sentimentos. Isto
porque ela, a Democracia, é o único princípio de organização do Estado
e da sociedade que faz da liberdade de expressão a maior expressão da
liberdade. Que possibilita a quem quer que seja dizer o que quer que
seja, acenando mais e mais com a possibilidade de realização do ideal
rousseauniano de “todos decidindo sobre tudo”. Donde o avizinhar-se do
enfrentamento de novos e fundamentais questionamentos para a
mencionada qualidade de vida política, tais como: a fidelidade
partidária que se exige dos candidatos eleitos não é de se fazer
acompanhar da fidelidade dos partidos a si mesmos, programaticamente
falando? Partidos tão mais democraticamente autênticos quanto livres
desse nome feio que é o mandonismo? Dessa prática imperial que é o
cesarismo interno? Partidos com proprietários ou donos, cartorialmente
oligarquizados? Como se fossem a mais colonial das fazendas de gado? E
as regras de exclusão em que se traduzem o quociente eleitoral e o
fenômeno das sobras de votos? Preceitos que possibilitam a candidatos
e partidos se apropriarem de sufrágios que não receberam da pia
batismal das urnas? São eles compatíveis com o princípio
constitucional da soberania do eleitor? Eleitor que vê o seu voto cair
no colo de um terceiro candidato ou um de um partido estranho à sua
inclinação ideológica e simpatia pessoal? E o que dizer do pedido de
registro de uma candidatura notoriamente identificada pela tarja de
processos criminais e ações de improbidade administrativa que pelo seu
avultado número sinalizam um estilo de vida do mais aberto namoro com
a delitividade? Será que não começa por aí a concretização da
idéia-força de que o povo merece o melhor? Sabido que a palavra
“candidato” vem de cândido, limpo, depurado, enquanto o vocábulo
“candidatura”, convergentemente, não significa senão candura, pureza,
depuração ético-representativa? E o que pensar do instituto da
suplência em dobro para os senadores e dos candidatos a vice-chefia do
Poder Executivo? Sua previsibilidade constitucional é impeditiva da
identificação deles, por nome e por foto, na tela da urna eletrônica?
Não é chegada a hora de a Justiça Eleitoral melhor informar o eleitor,
fisionômica e nominalmente, quanto àqueles que poderão até ficar no
lugar dos titulares sem, no entanto, receber diretamente um voto
sequer? E as regras atuais sobre o uso dos órgãos de comunicação
social como veículos de interação com o eleitorado? São regras
extensíveis à mídia informatizada ou exclusivamente online? Ou esse
mais recente espaço midiático da internetização é como que um
prolongamento da esfera de privacidade das pessoas naturais, e, por
conseqüência, livre de antecipada ingerência estatal? Já
atinentemente às políticas públicas de conteúdo social e às obras de
infra-estrutura econômica e também de cunho social, deverão todas elas
sofrer paralisia em ano eleitoral? Ou o princípio da paridade de armas
na obtenção do voto popular não tem a força de impedir os governantes
de fazerem o que lhes cabe até por dever de ofício, que é precisamente
governar? Será que o assunto não é daqueles em que o Direito se faz
necessariamente orteguiano para falar de si para si, em alto e bom,
“eu sou eu e as minhas circunstâncias”? Sem nenhuma conclusão
apriorística, portanto? Também não é mais que chegada a hora de a
Justiça Eleitoral fazer ver ao Congresso Nacional que o financiamento
público das campanhas eleitorais é medida sem a qual o suicídio da
decência é ainda a mais doce das soluções, só para recordar o gênio
poético de Vinícius de Moraes? Sabido que todo caixa-dois é o madeiro
em que mais se crucifica a necessária igualdade mínima entre os
disputantes da preferência do eleitor? Eleitor, por sinal, que também
deve ser didaticamente alertado de que toda eleição popular é um
verdadeiro concurso público? Concurso, cujos candidatos são os
políticos, naturalmente, mas cujos examinadores são eles, os
eleitores? Eleitores que vão conferir as notas de corte, ou, então,
as notas de aprovação dos candidatos a cargo de representação popular?
A significar, então, que a indevida aprovação desse ou daquele
candidato é da responsabilidade de cada um dos votantes? Situação em
que o povo deixa de ser simplesmente vítima para também se tornar
cúmplice do seu próprio desencanto com a política? Agente funerário ou
coveiro de sua própria desgraça?
Senhores, não estou aqui antecipando voto. Estou apenas na linha de
Umberto Eco, agitando idéias para reflexão de todos nós. Por que esses
e tantos outros questionamentos que passarão a desafiar o
sentir-pensar de todos nós, pelos próximos dois anos, eminentes
ministros Joaquim Barbosa, Ari Pargendler, Félix Fischer, Caputo
Bastos, Marcelo Ribeiro, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia, Fernando
Gonçalves, Aldir Passarinho Filho, Arnaldo Versiani e Henrique Neves.
Questionamentos que serão encarados com desassombro e clarividência,
por certo, na medida em que soubermos resgatar em nós a inteireza que
resulta do equilibrado manejo dos nossos dois hemisférios cerebrais. O
hemisfério esquerdo, que é o lócus do pensamento; o hemisfério
direito, que é a morada do sentimento. E de cujo casamento por amor é
continuamente partejado o rebento da consciência. Essa consciência,
enfim, que é o ponto mais alto de nós mesmos, a nos lapidar por uma
forma tal que nos possibilita picotar o manto da noite para enxergar o
dia escondido lá dentro.
Certo, muito certo, estava Sheakespeare, para quem, certamente
exaltando a consciência, “a verdadeira transformação é um porta que se
abre por dentro”.