Presépios e Lembranças.

A festa de Natal nem sempre felicita as pessoas.

Mais das vezes infelicita, sobretudo porque maximiza o sentimento de solidão, de saudade, de perda de um ente querido, ou mesmo a insatisfação comum das vidas, sempre imperfeitas, nunca aceitas e menos compreendidas.

Machado de Assis, o gênio maior da nossa literatura, encarna tudo isso na frustração confessada na construção do belíssimo “Soneto de Natal”, em perfeição e singeleza.

O poeta vai e volta em muitas lembranças, de crianças e cantigas, tão antigas e afadigadas pela viva contradança, de um tempo que partira, mas permanecera, sufocando o estro e embotando o sequestro, que restou como rima perfeita o verso terminal mais que perfeito: “Mudaria o Natal ou mudei eu?”

O soneto se fez mais famoso em preferências e manias, a deflagrar responsório unânime, ou equânime de vulgos e doutos, em citações moucas em tanta banalidade.

Presépio montado há quarenta e quatro anos na minha casa.

Se Machado não conseguira “transportar ao verso doce e ameno” o que lhe pedia “a folha branca”, que direi eu, um Machado menor, despolido e desamolado em inspiração mais “frouxa e manca”, e o teclado sem seguir a pena que não acudia “ao gesto seu”?

Mudou o Natal ou mudei eu?

Vem a pergunta dirigida “urbi et orbi”, de Roma para o mundo, ou de cada um para o seu mundo, em cores, ao vivo, hoje em repetecos televisivos, em reprises segundo o desejo e à exaustão de cada um, a história terna para sempre a repetir: nasceu-nos um menino!

Como os pastores de então, numa singela narração aos homens de boa vontade, nasceu um menino, entre animais de criação, numa manjedoura humilde, todos ao abrigo comum do frio.

E quando nasce um menino, qualquer menino, a vida se renova; sequencia.

Estou a relembrar o presépio e com ele o olhar terno de minha mãe, tão puro e tão azul, que ainda me observa com compreensão e carinho.

Lembro dos meus Natais em criança.

Mamãe sempre montava um presépio com ajuda de seus filhos, e talvez seja eu apenas, cada um que fale por si, aquele que continua a faze-lo em sua ausência.

O presépio de minha mãe tinha poucas peças.

Presépio maior e árvore de Natal ao fundo.

Boi, jumento, alguns carneiros, Maria, José, pastores e anjos. O Menino Jesus só ocupava a manjedoura na noite de Natal, e os Reis Magos só chegavam na festa de reis.

Em criança, viajávamos na “Marinete de Seu Misael”, depois as de Luiz Prado e de Pedro Menezes que nos conduziam à cidade de Capela para passar o Natal.

Nesse tempo, não havia a Rodoviária Luiz Garcia, e o ponto das “Marinetes”, como se chamavam os ônibus de então, ficavam estacionados na Rua da Frente, local onde hoje trafegam as lotações urbanas em seu corredor exclusivo.

Não lembro de haver presépios na casa de meus avós maternos, quando o casarão da família se enchia de tios e primos, e ganhávamos cédulas de pequeno valor para os folguedos de barcos e carrosséis. Eu adorava os barcos de “Seu Pé de Ouro”, salvo engano, sem enjoos ou vômitos.

Há uma lembrança fugaz do presépio que minha avó, Evangelina Cabral Machado, Vovó Nina, montava no Orfanato São José onde residia, na Praça do Amparo de Capela, cujos carneirinhos eram esculpidos com ossos e exibiam uma lã verdadeira.

De meus avós maternos, Félix e Ascendina Cabral, relembro a mesa farta, enorme e festiva.

Lembro de histórias outras em minhas priscas épocas. Dos 16 de Julho, por exemplo, o Dia de Nossa Senhora do Carmo, quando tomávamos um carro de boi almofadado com colchão e encimado por cobertura de junco, em demanda do Povoado Pedras, atravessando a pequena ponte sobre o rio Favela, em íngremes encostas; um perigo em inclinações e sacolejos, viagem de horas escorridas em velocidades quelônias.

Quanto a Vovó Nina, já o disse várias vezes nos meus textos e nunca será excessivo repeti-lo. Vovó Nina restou uma suave lembrança em minha vida, sobretudo quando repreendia meu pai, ao vê-lo punir-me por um comportamento, uma arrelia minha qualquer, que lhe importunava o sossego às suas contínuas leituras. Relembro-a a gritar: Manuel!!!, invocando censura e exigindo a obediência e o reparo ao excesso desnecessário.

Voltando, porém, ao presépio, relembro que minha mãe nos ensinava a fazer pequenas plantações com milho-alpiste, salvo engano, em prévia do Natal.

Eram pequenas latas que enfeitavam o presépio quando germinadas, porque assim ornavam qual capinzinho verde, enquanto melhor cenário natalino, compondo o restante com papel crepom verde, e um pequeno espelho de modo a formar um lago.

O presépio de minha mãe só tinha uma lâmpada e esta ficava junto a manjedoura.

Depois é que surgiram as instalações luminosas, que mais das vezes eu consertava e repunha as lâmpadas coloridas, de um ano para o outro, porque passado o Natal tudo era bem guardado carinhosa e zelosamente.

Eu não sei onde foi parar o presépio de minha mãe, se existe, se é montado ainda.

Nunca atinei para isso. Interessa-me a memória apenas, afinal, casado há quarenta e quatro anos com Tereza Cristina, neste ano em que estou curtindo minha senilidade criativa de setenta anos, montamos a nossa árvore de natal e o nosso 44o presépio, ajudado agora pelos netos João Marcelo (6 anos) e Pedro Henrique (10), na esperança de suscitar continuidade.

Devo dizer que nos meus Natais sempre ornamentei minha casa com luzes e cores.

Como as pessoas só veem o que querem, poucos lembram da minha gambiarra colorida sempre única, enquanto sorriso natalino nos quase quarenta anos em que residi na Rua Laura Fontes.

Já os presépios, porque armo só para os meus íntimos somente, nunca foram muito visitados.

Importante para mim, foi o Menino ter sempre nascido no meu lar e de Tereza, sem muitos sonhos, nem muitos desejos, pouca e nenhuma promessa e muitas realizações.

Se houve mérito ou não, a vida me sorriu plenamente. Lutei pela vida, conquistando tudo com esforço e tenacidade, nunca recebendo emolumentos e vantagens, sinecuras que exigissem dorsais curvaturas em servis retribuições.

Dei aula de tanta coisa de rala utilidade e parca remuneração!

Dir-se-á um amontoado cultural de teoremas, lemas e corolários, que me fizeram pleno e audaz por perdulário na distribuição do saber adquirido e amontoado.

E hoje venho perquirindo outros saberes, dizeres e humores, como tantos que mudaram o Natal sem me mudar.

Porque continuo a montar meu presépio.

Presépio mais recente. Uma das quinquilharis que a China produz e exporta para o mundo.

A curtir o Natal, as luzes e as cores. A árvore de Natal com bolas.  A iluminação, o Papai Noel que muitos “santos” o demonizam e outros que veem o “Bom Velhinho”, como um bom mote para que se estimule o “efeito manada”, para o desenfreie do consumo exagerado por urgente, pressão de gastos do já moribundo décimo terceiro salário.

Meio mundo rezando com a Igreja entupida de fiéis. As capelas repletas de dominicais infiéis, que vem se fidelizar anualmente na Missa do Galo, retirando até os assentos dos assíduos frequentadores, mas cantando paz na terra aos homens de boa vontade.

Quando até a Missa do Galo vira uma analogia do céu e da salvação, cuja fila deve ser tão grande na entrada, que melhor talvez seja o desistir, por melhor companhia; perder-se no caminho, pelo menos.

Porque melhor que tudo é comer a ceia sem traumas dos que não sabem cozinhar, nem comer.

Mesmo quando a reunião tenha risos, cores, sabores e degustes, tudo que enseje bem-estar e mascare o mal-estar comum das diferenças e vontades.

Porque sem isso o Natal se torna então uma festa complicada. Uma festa destinada aos filhos da luz, poder-se-ia dize-lo assim. Mas que se torna triste, de cobranças inúteis, infinitas vezes. Não basta já ser uma festa de lembranças e saudades?

Por que difamar o Natal, como esbórnia hedônica, por sinistro desprazer?

Não é melhor assim o Carnaval, quando os filhos das trevas se divertem e se esbaldam em alegria louvando a vida?

E também o Réveillon, quando o Champanhe desce sem traumas, e o São João, tempo em que melhor se pode arear a fivela?

Mas, a despeito de recriminações e recados penitenciais, tão presentes nas pregações de Natal, eu quero falar é de presépios, mesmo que muitos o vejam estragado.

Porque o que me motiva, sem estragos por agora, é dizer que neste ano de 2017, minha ceia de Natal não teve nem Peru, nem Chester.

Tereza preparou sozinha um camarão com milho delicioso, um mal assado de filé com ervilhas, um pernil de suíno com seleta de legumes e bacalhau com batatas ao murro, tudo maravilhoso, acompanhados pelos vinhos da minha escolha; Periquita e Rapariga da Quinta, por esquente, Woodbridge e Marques de Casa Concha, tudo o que me agrada.

Só não houve um costume dessa vez.

Como não temos auxiliares, sobretudo nessas noites festivas, sou eu quem lava todas as panelas e pratos quando a festa termina, coisa que o faço com alegria, as panelas logo antes da festa e após preparos e cozimentos, e os pratos e talheres depois da ceia. Tudo sem reclames da minha parte.

Se há reclames, Tereza é quem os faz. Encrenca comigo porque eu deixo de conversar com os convidados para lavar pratos e talheres.

Eu gosto assim, porque quando pressinto que minha presença se faz desnecessária, afinal melhor escuto que papeio, deixo os convidados no papo, fujo despercebidamente, e vou organizar a cozinha, para não deixar nada dormir sujo.

Digo isso porque muitos se chocam com a possibilidade de lavar um prato ou uma colher. Acham ser algo menor; serviçal. Nojento inclusive! Não sei como essas pessoas se alimpam ao descomer. Quando o mundo seria bem melhor se cada um lavasse também o prato que comesse e forrasse a cama em que dormisse: outro grande conselho de minha mãe para perquirir uma vida reta e conseguir uma casa organizada.

Neste Natal, porém, alguém lavou os pratos e talheres e não sobrou nada para mim.  Não sei quem foi. Foi uma boa alma. Que Deus a conserve neste bom caminho.

Armar Presépio, Árvore de Natal, enfeites luminosos, portanto, são uma tradição nos meus Natais.

Devo dizer, todavia, que isso está me ficando estafante. Teimo em fazer as coisas sozinho, e como dizia a vizinha patusca de Nelson Rodrigues, “setenta anos não são setenta dias”. Mas, este é meu jeito, ora essa!

Assim, compartilho com meus leitores os três presépios que armei na minha residência.

Por que três? Pergunta o idiota inútil assaz sardônico. Porque quis, ora essa!

O primeiro no seu 44o ano de montagem. O maior há uns quinze anos repetido, e o terceiro, mais burilado, por fabricado na China, que é mais recente.

São armações toscas de uma criança setentona, infantil resquício em prévias de senilidade.

Bom Natal para todos.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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