Prisão Preventiva e Prisão Temporária

Como dissemos na semana passada, o “Caso Daniel Dantas” (com surpreendentes prisões e solturas do banqueiro e ampla cobertura pela mídia convencional e on line) promete muitos desdobramentos institucionais e nos proporciona debater temas jurídicos bem interessantes.[1]

 

Hoje, publicamos artigo do colega advogado e amigo pessoal Evânio Moura (advogado criminalista, professor de direito processual penal, mestrando em processo penal pela PUC-SP e Conselheiro Seccional da OAB/SE), no qual é efetuada uma abordagem esclarecedora dos institutos jurídicos da prisão preventiva e da prisão temporária, à luz do “Caso Daniel Dantas”.

 

 

O prende-e-solta do banqueiro, o Tribunal de Nuremberg e os males do Brasil.

 

 

“A liberdade é o caminho mais curto entre o homem e a felicidade”.  – Martin Luther King Jr.

 

 

Aturdida, a sociedade brasileira acompanhou nas últimas semanas os acontecimentos envolvendo suas instituições representadas pela Polícia Federal, Ministério Público e pelo Poder Judiciário (em todas as suas instâncias, inclusive e principalmente na cúpula – STF) na discussão sobre direitos fundamentais e prerrogativas do indiciado no curso do Inquérito Policial. Ainda dentro deste debate aberto e transmitido on line, muito se falou e pouco se esclareceu sobre as modalidades de prisão processual e, sobretudo, com relação à precariedade das medidas cautelares de constrição da liberdade.

 

Sobre a prisão no curso de uma investigação ou no desenrolar de um processo criminal, convém esclarecer se tratar referido ergástulo de uma medida de natureza provisória, passível de ser revista a qualquer tempo, quer pela própria autoridade judiciária responsável pela sua decretação, quer pelas instâncias superiores, mormente ao se apreciar pedido liminar em sede de habeas corpus.

 

Foi o que aconteceu com a “Operação Satiagraha[2]. Importante destacar que inicialmente fora determinada a prisão temporária do banqueiro e de outros co-indiciados por supostos crimes praticados contra o sistema financeiro nacional (figuras típicas contidas na Lei nº. 7.492/86 – Lei do Colarinho Branco, tais como: “gestão fraudulenta”, “evasão de divisas”, “sonegação fiscal”, dentre outros), sendo que posteriormente à concessão da primeira ordem liberatória de habeas corpus (art. 5º, LXVIII, CF), houve por bem o Juiz titular da 6ª Vara Federal de São Paulo – especializada em crimes contra o sistema financeiro nacional e lavagem de dinheiro (Lei nº. 9.613/98) decretar a prisão preventiva do banqueiro, alegando a existência de fatos novos[3] ensejadores de referida medida processual.

 

Relevante diferenciar a prisão temporária da prisão preventiva, demonstrando quando se apresentam como cabíveis e os fundamentos utilizados para a decretação.

 

A prisão temporária fora instituída no Brasil pela Lei nº. 7.960/89, tendo como principal objetivo criar um mecanismo de cerceamento da liberdade durante o curso do Inquérito Policial, quando ainda se promovem investigações, sendo incipiente o juízo de certeza. Em verdade com referido instituto jurídico processual penal, tem-se a regularização das famosas “prisões para averiguações”. Como o próprio nome esclarece, esta modalidade de prisão tem prazo de validade estabelecido em lei, sendo de até 05 (cinco) dias acrescidos de até igual período (em vários casos, inclusive na hipótese de crimes contra o sistema financeiro – art. 1º, III, o, Lei nº. 7.960/89) ou de até 30 (trinta) dias acrescidos de até igual período, para crimes etiquetados como hediondos (art. 2º, § 3º, Lei 8.072/90).

 

Pois bem, no segundo dia de prisão temporária fora ajuizado habeas corpus que consiste em instrumento processual célere e informal manejado com o objetivo de evitar ou estancar a prática de constrangimento ilegal, perante o STF, pedindo-se a concessão de medida liminar, antes mesmo de ouvir a autoridade coatora. Não há a menor dúvida que se justifica o aforamento de habeas corpus diante de prisão temporária, podendo-se utilizar diversos argumentos para a sua impetração (carência de fundamentação da decisão que decreta a privação da liberdade, desnecessidade da prisão, impossibilidade da utilização de prisão cautelar, incompetência do juízo, etc.).

 

Convém esclarecer, também, que a decisão coube ao STF porque existia em curso na Suprema Corte um habeas corpus preventivo, convertido em liberatório diante da consumação da prisão. Em razão das férias forenses (mantidas para os Tribunais Superiores, mesmo após o advento da EC nº. 45/04 – Reforma do Judiciário) compete regimentalmente ao presidente do STF decidir sobre os pedidos urgentes, dentre eles, obviamente, o habeas corpus.

 

Causa espécie, todavia, que antes mesmo de ser cumprida a decisão do STF, em decisão tão veloz quanto à concessão da liberdade, se promovesse a nova decretação da prisão preventiva pelo Juiz de primeiro grau.

 

A prisão preventiva, ao contrário da temporária, não vem com um prazo determinando, sendo possível durar por alguns dias (conclusão do inquérito, oitiva de determinadas testemunhas, realização de busca e apreensão) ou perdurar por um interstício mais dilatado (merece destaque que o art. 5º, LXXVIII da Constituição Federal assegura a duração razoável do processo, sendo que jurisprudência do STF e STJ relativizam e muito referido princípio nas hipóteses de crimes complexos e processos com vários réus, permitindo que a prisão preventiva perdure por prazo maior que o previsto em lei), mormente se não se apagou o fundamento legitimador para a sua decretação (especialmente a garantia da ordem pública e a conveniência da instrução criminal, hipóteses contidas no art. 312 do Código de Processo Penal, com sua redação originária de 1941).

 

Ademais, diferenciado a temporária da preventiva, além da questão do prazo de duração, tem-se que a temporária somente poderá ser decretada no curso de um inquérito policial, enquanto que a prisão preventiva poderá ser utilizada durante o inquérito policial e no curso do processo criminal, até o trânsito em julgado da decisão condenatória.

 

Quer temporária, quer preventiva, a prisão processual deve ser encarada como exceção, somente sendo utilizada quando absolutamente imprescindível para o curso das investigações e da lide penal. Não se pode abusar da utilização de referidos institutos, como sói acontecer na maioria dos casos. Prende-se gratuitamente no Brasil, sendo que parte significativa de referidas prisões são de réus primários, sem antecedentes, acusados de crimes sem violência ou ameaça, implicando na superlotação dos cárceres de forma absolutamente desnecessária.

 

Volvendo ao caso concreto, alegou o magistrado titular da 6ª Vara Federal de São Paulo que a ordem pública estava em risco (probabilidade de em liberdade vir o endinheirado e bem relacionado indiciado a praticar novos delitos). A condição social não pode ser utilizada como fundamento idôneo para decretar ou revogar uma prisão processual, embora neste imbróglio diversas lições comezinhas do processo penal foram olvidadas.

 

Novamente instado a se posicionar o presidente do STF em decisão dura e enfática concede novo habeas corpus, desta feita apontando a nova decretação de prisão processual como ato de insubordinação e menosprezo as decisões de instância superior. Foi mal interpretado o ministro do STF, principalmente pela verborragia da decisão, utilizando adjetivos fortes e severos para acoimar as práticas da polícia federal e do juiz de primeiro grau.

 

Espetacularização” e comportamento de “Gangster” foram alguns dos adjetivos. Se por um lado não convém ao magistrado o uso desmedido de palavras e expressões, externando entendimentos de mérito antes do momento oportuno, também não se apresenta como consentâneo com o Estado Democrático de Direito a banalização da prisão, a utilização de algemas para apear pessoas que não demonstram agressividade, tudo feito diante das câmaras de TV, exibindo-se os indiciados (que ainda sequer ostentam a condição de réus, posto que não foram denunciados pelo Ministério Público e a denúncia não fora recebida pelo Juiz) como uma espécie de troféu para o escárnio público.

 

E se os presos forem inocentes? Como compatibilizar referida prática com o sacrossanto princípio constitucional esculpido no art. 5º, LVII, da Constituição Federal?

 

Aliado a tudo isso, tem-se as já famosas dificuldades criadas para os advogados, negando acesso a autos de inquérito policial, ferindo-se, inclusive a Lei nº. 8.906/94.

 

Não se pode admitir que vigorem hodiernamente práticas inerentes a um Estado policialesco, um Estado totalitário, com utilização de práticas comuns em ditaduras ou tiranias, onde os acusados não figuram como sujeitos de direitos e sim como objeto de investigação e punição.

 

É preciso se insurgir contra referidas práticas. Muito sangue fora derramado para que conquistas básicas como o direito a integridade física, inviolabilidade do domicílio, imagem, ampla defesa, presunção de inocência, dentre outros, constassem no rol de garantias fundamentais do cidadão brasileiro, verdadeiras cláusulas pétreas do Estado moderno e republicano.

 

Dir-se-ia: mas se tratam de sonegadores, pessoas que lavam dinheiro, promovem evasão de divisas, praticam corrupção e outros crimes que sangram os cofres públicos. Pode tudo isso ser verdade, porém a antecipação de punição, a sede de vingança, a perseguição desmedida, não contribui um centímetro para evolução de nossas instituições, do Estado e da cidadania, como um todo.

 

Referida situação, faz lembrar o ocorrido após o final da segunda grande guerra mundial, onde as nações vencedoras conceberam um Tribunal situado na cidade de Nuremberg com o propósito de julgar os nazistas que praticaram crimes contra a humanidade. Os julgamentos de referida Corte aconteciam dentro da mais elevada previsibilidade, onde antes mesmo de se terminar o processo já se sabia o veredicto, onde o réu deveria provar que é inocente e não o acusador que o réu é culpado[4], onde se cumpriam algumas formalidades apenas para justificar a pena.

 

Esta forma de punir é correta? Penso que não. Acredito na necessidade de uma justiça livre, democrática e que respeite todas as garantias do réu.

 

À guisa de finalização pode-se afirmar: como se tratam de banqueiro, mega-investidor, ex-prefeito de São Paulo, dentre outros, todos defendem, vários opinam, tudo é absurdo.

 

Não é isso. Em verdade, é preciso não ser hipócrita para enxergar o óbvio. Não é o processo criminal que vai trazer igualdade de tratamento para pessoas desiguais. Evidentemente que as injustiças e mazelas sociais se repetem no processo penal, como uma espécie de espelho da sociedade.

 

Logo, seria estultice acreditar que todos os habeas corpus tramitam na mesma velocidade e que todas as ordens de prisão são cumpridas da mesma forma. Não. Porém, não é porque os envolvidos são endinheirados que se pode relativizar as garantias constitucionais. Em verdade, tem-se que defender referidas garantias para todos, vigiar o cumprimento em todas as hipóteses, buscar um tratamento igualitário, não nivelando por baixo, com apego ao ilegal e sim, buscando o respeito da Constituição Federal, indistintamente.

 

Longe está o dia em que o Brasil será de fato uma pátria que com eficácia garante os direitos fundamentais preconizados na Carta Cidadã, posto que, como disse Mário de Andrade em seu clássico Macunaína – o herói sem nenhum caráter: “pouca saúde e muita saúva os males do Brasil são”.

 

Parafraseando o renomado escritor poder-se-ia afirmar: “muitos arbítrios e veleidades as prisões do Brasil são”.

 

Oxalá um dia esta situação mude, sobretudo para os “moradores do andar de baixo[5], para os presos de sempre, para aqueles que superlotam desnecessariamente os cárceres no Brasil.”



[1] https://.infonet.com.br/mauriciomonteiro/ler.asp?id=75689&titulo=mauriciomonteiro

[2] Ainda está por vir um estudo sócio-político dos nomes de batismo das operações policiais encetadas pela Polícia Federal, devendo-se descobrir qual o real intuito da PF ao nominar seu trabalho, que deveria ser corriqueiro e inerente as nobilitantes funções públicas de Polícia Judiciária Federal (art. 144, § 4º, CF). Marketing e exibicionismo (apelidado pelos criminalistas como pirotecnia) parecem ser os principais objetivos de referida prática.

[3] Referidos fatos novos, divulgados para todo o país, consistem na tentativa de suborno de um Delegado de Polícia Federal. Deve-se registrar a dificuldade em se compreender referido flagrante, posto que na doutrina dominante tem-se situação de flagrante preparado e, portanto, inválido, enquanto prova processual.

[4] Em recente entrevista na Folha de São Paulo (14.07.08, Caderno Brasil, pp. A14 e A15) o Ministro da Justiça afirmou que vai ser difícil o banqueiro provar que é inocente. Ora, o correto seria afirmar o contrário, ou seja, deve o Estado provar que o réu é culpado, até mesmo, porque em havendo dúvida sobre a culpabilidade do réu, deve-se aplicar, ao final da instrução processual o vetusto, porém atual, princípio do in dubio pro reo.

[5] Toma-se de empréstimo expressão imortalizada pelo jornalista Élio Gaspari.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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