Recebi um convite para a formação de um grupo de WhatsApp, esta novidade que vem revolucionando a mídia em comunicação rápida e econômica.
Neste grupo tentar-se-ia reunir, quarenta e cinco anos depois, os formandos em Química Industrial, turma de 1970 da Escola de Química de Sergipe, segunda fornada da então nascente Universidade Federal de Sergipe.
Foram 22 os formandos naquele 12 de dezembro de 1970, passados quarenta e cinco anos em muitas lembranças, sonhos e esperanças iniciadas num tempo que se espraiava como de um “Brasil Grande”, mas que a história rebatizou como “anos de chumbo”.
E o desafio que se nos apresentava naqueles anos ufanistas em tricampeonato mundial com a pátria destinada à pujança restou desavio plúmbeo em desconstrução seletiva. Hoje estamos piores do que éramos e falta-nos sobremodo esperança.
E por pior e bem pior, nestes tempos de agora, o discurso oficial entende que só estão a merecer memória aqueles que se posaram de “rebeldes, sofridos e injustiçados pelo regime ditatorial vigente”. Nada contemplado no nosso sorriso quando é exibida nossa foto de formatura, um instantâneo esmaecido da alegria que era bem nossa, exclusivamente nossa e do nosso entorno, enquanto desabroche de carinho.
Nós não éramos rebeldes e nunca o fomos. Nem rebeldes nem heróis. Também nunca fomos bandidos, nem banidos. Animava-nos desvendar as Ciências Exatas, aquelas que não se deixam conspurcar nem corromper.
Vale à pena lembrar a nossa passagem despercebida se os heróis de nossa geração viraram tanto bandidos?
Falar de vinte e sete “calouros”, ou vinte e oito, salvo engano, que vitoriosos se fizeram no vestibular de 1967?
Dizer que o curso não era fácil, alguns se atrasaram e formaram-se depois, muitos o abandonaram, três se transferiram para a Bahia e outros se juntaram a nós no caminho?
Vinte e dois foram os concluintes em 1970: 1.Antímio Guimarães; 2. Antônio Gonçalves de Lima; 3.Antônio Fernando Prado Andrade; 4.Carlos Alberto de Oliveira Lins, a quem chamávamos “O Especialista”, por ser proprietário de livraria com este nome; 5.Demétrio Atayde Lisboa; 6.José Augusto Teles; 7.José Carlos Farias; 8.José Carvalho; 9.José Dalmo Farias de Almeida; 10.José Murilo de Menezes Cruz; 11.José Wellington Dias Lemos; 12.Launora Melo de França; 13.Liosmar Santana; 14.Magaly Menezes Porto; 15. Marcos Túlio Barbosa Mendonça; 16.Maria Elena Santos; 17.Maria Lauricéia Silva Pereira; 18.Nehemias Curvelo Pereira; 19.Odilon Cabral Machado; 20.Raymundo Nonato Vieira de Araújo; 21.Roberto Morais de Almeida Mesquita e 22.Walmilson de Oliveira Santana, turma que teve como Paraninfo o Professor José Calos Garcez Menezes.
Dos vinte e dois formandos, quatro já são falecidos: José Wellington Dias Lemos, Roberto Morais de Almeida Mesquita, Walmilson Santana e José Dalmo de Almeida Farias, o goleiro da equipe de futebol de salão da Química.
José Wellington era inteligentíssimo. Nós o chamávamos de Lemos. Era o mais novo da turma, deveria ter hoje 67 anos ou 68. Era agitadíssimo também. Uma figura muito querida pelos seus modos exagerados, capazes de solidariedade extrema, mas profundo desafiador à vida.
Quem não lembra de Wellington comendo todos os sanduiches da cantina, só para não deixar que sobrasse algum para quem chegasse depois?
E o que falar da obesidade adquirida e de seus regimes em pão de centeio e queijo minas, no tempo, pós-formatura, em que estávamos na COPPE-UFRJ, quando preferia adquirir livros alimentando-se em rigoroso jejum, criando uma barba enorme e exibindo uma magreza de dezenas de quilos perdidos, qual faquir?
E por que não falar também, que sendo monoglota, um verdadeiro analfabeto no idioma alemão, em suprema ousadia de cabra-da-peste nordestino, foi parar na República Federal da Alemanha, no acordo nucleal Brasil-Alemanha, de lá retornando, anos depois, especialista em Energia Nuclear, morrendo sem muito mais realizar, por ataque brusco, solerte e traiçoeiro, de um coração que lhe parou os passos, enquanto jovem, muito jovem ainda?
E Roberto Morais Mesquita, o nosso “Mesquitinha”, tão querido e amigável de saudosa lembrança, um exemplo notável de persistência e tenacidade, por vencedor de paralisia infantil, desde a infância, quando o conheci no Colégio Brasília, lá pelos tempos dos anos 1950.
Roberto que era bem diferente de Wellington e ambos morreram das mesmas circunstâncias circulatórias. O coração tem estas surpresas e são insuficientes as explicações.
Se Wellington desafiava a vida em excessos pantagruélicos, Roberto era o seu oposto. Era metódico, cuidadoso, moderado em tudo. Tornara-se um atleta, vencendo a poliomielite na juventude. Uma deficiência que emurchecera uma das pernas, e que lhe tolhia os movimentos em criança quando o conheci. Mas que depois superou e quase ninguém o notava, se tornando um bom jogador de bola, sendo titular da seleção de futebol de salão que foi competir nos jogos universitários em João Pessoa, na Paraíba.
Há um fato que possuo de imensa saudade daquele tempo dos jogos na Paraíba, que vale o relato, enquanto fraqueza e falha involuntária. Aconteceu quando o nosso time foi jogar numa quadra de esportes não tão distante do alojamento em que ficamos, num antigo convento do Roge, então em ruínas.
Roberto, por ser míope, confiou-me seus óculos na hora do jogo. Quando o jogo acabou, Roberto restou perdido em João Pessoa. Eu fora embora, levando seus óculos comigo no bolso da camisa. A salvação de Roberto fora outro colega, Liosmar Santana, que o encontrou a ermo, angustiado.
Tenho excelentes lembranças de Roberto Morais de Almeida Mesquita, a quem chamávamos de “Mesquitinha”, nem sempre do seu agrado, mas carinhoso e terno da minha parte. Um bom amigo que emigrou para o Rio Grande do Norte servindo na Petrobras, casando com uma moça Potiguar, Marecilda, salvo engano, com ela tendo filhos de pouco convívio, porque partiu muito jovem sem ter tempo de ser avô e curtir os netos. Um bom colega que, com certeza não se faria diferente; foi um bom pai e seria um grande avô, únicas coisas que merecem importância na fugacidade da vida.
Roberto retornava pouco a Aracaju. Soube-o, muitos anos passados, por seu irmão, Renato, e sua mãe, Dona Waldir, que um bruto enfarte o carregou. Mesma moléstia que acometera o seu pai, que falecera também muito jovem.
Nos contatos atuais de WatsApp, soube-o agora que faleceram mais dois outros colegas daquela turma: Walmilson Santana e José Dalmo Faria de Almeida, este último recentemente, cerca de noventa dias passados.
De Walmilson direi pouca coisa. Outros colegas poderão dizê-lo melhor. Era de compleição miúda e franzina.
Talvez para compensar seu porte físico Walmilson exibia uma agitação de molde a torna-lo mais visível e destacado.
De mais amiúde direi que fomos colegas e parceiros num estágio que fizemos em Campinas, São Paulo, em Julho-Agosto de 1970, no Centro Tropical de Pesquisa e Tecnologia de Alimentos, onde estagiamos no setor de sucos e refrigerantes.
Lembro que o laboratório em que fomos instalados estava em reforma, e o nosso orientador nos colocou para pesquisar na Biblioteca.
A continuar assim, o estágio seria um desastre. Nada aprenderíamos em termos práticos e tecnológicos; só teoria. A insatisfação foi geral e a Direção do Instituto nos realocou no setor de doces e frutas cristalizadas; Walmilson, Liosmar e eu, tempo em que aprendemos a trabalhar com a glucose, in natura.
Depois nos mudamos para o setor de óleos vegetais, onde estava Antímio Guimarães, o quarto colega naquele estágio.
Numa ida ao ITAL fomos os quatro atropelados por uma Kombi Volkswagen que avançou velozmente subindo a calçada onde estávamos no entroncamento das Avenidas Francisco Glicério e Campos Sales.
Dos quatro estagiários, Antímio foi o mais prejudicado.
Se alguns passaram incólumes e outros com pequenas escoriações, Antímio levou uma grande pancada no queixo, e o estágio restou uma preocupação hospitalar.
Foi internado de urgência no Hospital Irmãos Penteado, operado por um jovem médico chamado Dr. Garlipe, tempo em que virei enfermeiro, alimentando aquele paciente rebelde que só podia ingerir refeições líquidas via canudinho, ficando um bom tempo assim, com os dentes amarrados, jungidos e imobilizados, metalicamente.
A título de troça, duas lembranças daquele evento sobraram xistosas. Uma delas era uma pilheria nossa. Dizia que Antímio quisera testar a dureza do próprio queixo, parando a Kombi desembestada.
A outra vem de Liosmar Santana que ao tomar uma condução para o Hospital Irmãos Penteado, em plena confusão traumática e temática, pediu que o levassem a um Hospital que seria “ou dos Irmãos Cabeludos ou Assanhados”. Uma hilariante confusão em meio a tantos receios.
Por causa deste acidente, assumi também o trabalho de Antímio no setor de óleos vegetais, o estágio sendo concluído com a realização de um completo balanço material da planta de extração e retificação do óleo de amendoim, constante no relatório final que redigi, e possuo ainda, onde nos teceram muitos elogios.
Voltando a Walmilson, este radicou-se em Maceió e não mais o vi nem soube qualquer notícia. Alguém me falou que lecionava na UFAL.
Agora me chega a notícia que falecera tragicamente, atropelado em anos passados. Disseram-me que estava se exercitando numa bicicleta e foi colhido por uma carreta desgovernada. Algo muito terrível, mas bastante comum no noticiário, sempre a lamentar, um número a mais acrescido à violência do nosso trânsito, tão ingovernável, quanto pior e cruel.
Quanto a Dalmo Faria de Almeida, este falecido recentemente, direi que era um homem tranquilo. Um bom exemplo de relação amena. Casou muito cedo com sua prima Joyce, uma carioca receptiva e hospitaleira.
Poder-se-ia dizer que Dalmo sofria muitas vezes de algumas pilhérias. Coisas tolas que nunca o incomodavam, por espírito de tolerância e avesso a discórdias.
Achava graça quando lhe cobravam uma eficiência enquanto goleiro do nosso time de futebol de salão, por exemplo, culpando-o de derrotas sofridas, quando o time era de pouca valia e não o goleiro.
De goleiros todos o sabem que é uma posição ingrata, geralmente empurrada para os mais dóceis e pouco exigentes nas reinvindicações de melhores posições no escrete.
Sobrou para Dalmo a inglória posição de defender o time da Química, o fazendo com gana e persistência.
Do casal Dalmo e Joiye lembro sobremodo dos nossos primeiros tempos enquanto estudantes bolsistas de Pós-Graduação na COPPE-UFRJ.
Eles constituíram para nós um grande apoio no Rio de Janeiro. Eram a nossa família ali, não só nos recebendo para os festejos de Natal e Ano Novo, no belo apartamento de seus pais e sogros, na Rua Toneleiros, como também sendo nossos fiadores quando alugamos um apartamento e nos ajudaram a adquirir mobiliário e utensílios a preços módicos.
Do casal Dalmo-Joyce nascera naquele tempo uma garotinha. Era linda! Uma loirinha que deverá ter hoje quarenta e cinco anos, mais ou menos, alguns netos, e bisnetos talvez.
Do meu conhecimento, sei que Dalmo também trabalhou na Petrobras.
Embora morássemos em Aracaju, nunca tivemos uma convivência maior. A agitação do existir impõe distâncias, adiando encontros por nos acharmos eternos.
Assim, nossos encontros eram esporádicos geralmente acontecidos em eventos religiosos, mútuas promessas de variado sorriso. Nunca pertencemos a um grupo comum em interesses e atividades.
Encontrei-o numa solenidade de formatura. Para minha surpresa, estava todo feliz envergando uma beca de Bacharel em Direito. Postulava sucesso na advocacia, já que nos últimos tempos a Química se revelara infértil para nós todos.
Não sei se chegou a exercer a nova profissão como desejava.
Soube-o agora, que o fígado o traiu na caminhada. Logo ele que nunca atraiçoara ninguém, deixando Joyce, sua amante única, inconsolada.
Que Deus o retenha nos seus insondáveis mistérios! O que foi sempre o será, enquanto o homem puder sonhar, poder fazer história, plantar sementes, realizar-se e expandir-se e restar por fim uma lembrança no seu entorno e descendência. O resto fica por conta de Deus somente. Ou não fica! O que fazer se assim o for?
Quarenta e cinco anos depois, quatro colegas não estão mais conosco, é verdade!
A notícia da perda de um homem, qualquer homem, revela a nossa finitude, em precariedade e volatilidade passageiras.
Permanentes e marcadamente presentes restam-lhes uma sobrevida por recordação que ficará conosco ainda, por todo alcance que a vida nos permitir.