Quaresma é um tempo de penitência de arrependimento e perdão. Quaresma é um tempo de tristeza, de cobrir-se em cinzas, assinalando a fugacidade da vida e o medo do além-morte; dos castigos divinos, creditados mais terríveis e imprescritíveis que o dos homens. Os homens perdoam-se um aos outros, ensaboando-se e esfregando-se num banho comunitário de imperfeições. O tempo é o grande aliado no amortecer de amores e desamores, afinal a dor de ontem sempre pode ser menor que a angústia que virá. E a Quaresma contribui também para absolvição das culpas. Basta o arrependimento, a promessa de não refazer o erro, e eis a remissão do pecado, com direito a bênção e o ato de contrição. Simples, muito simples! O sacerdote tem esta missão de conferir a paz dos espíritos. Tudo uma questão de fé. Só de fé. E ter fé nos tempos atuais é difícil, muito complicado! A racionalidade impede este mergulho de confiança no abismo. Porque a fé pode ser manipulada, modificada, desviada em função de conveniências. E a racionalidade prega um conhecimento de si e do universo em causa, efeito e circunstância. Mas, a pregação da Quaresma é bela. Possui o suave perfume do incenso louvando o senhor da vida que não violenta o livre arbítrio. Uma coisa terrível, porque as instituições humanas, as religiões, sobretudo, não aceitam tal livre pensar. E assim as perseguições idólatras, as heresias, as imposições por ortodoxia de mandos atrabiliários; tudo em nome de Deus, um abuso espoliador do Seu santo nome, que não carece de sacrifícios nem sofrimentos. Assim, louve-se a modernidade que suavizou a raivosa pregação humana ditada como divina. Os homens, sem exceção, são imperfeitos. Deveriam amar bem mais. Poderiam se tolerar, pelo menos. Mas a intolerância reluz bem mais como pregação. E assim um acréscimo de miséria sempre acontece. “Por que cometo o mal que não almejo?” Pergunta o apóstolo dos gentios, o grande divulgador da Boa Nova em semeação universal. Porque só é fácil fazer o bem a quem amamos: “Que pai daria uma serpente a um filho que lhe pedisse um pão?” Fazer o bem a quem não nos agrada é tarefa pior que quebrar granito às dentadas. E assim somos todos tão santos, quanto pecadores. E mereceríamos a vida eterna, se pagássemos por nossos erros como deveríamos já aqui na terra. No entanto, sempre podemos enganar o nosso vizinho, o nosso próximo em descarinho, solapando a regra, descumprindo a lei, corrompendo o olho mal vazado da justiça. Tudo amparado numa esperança vazia de um julgamento no além, em pleno vazio do desvario. “Ah! Mas, não é assim!” Fala o pregador quaresmal. Arrependimento, eis a maneira de reatar a amizade com Deus. É preciso que as frontes sejam cingidas com cinzas, para nos dizer que “somos pó, e ao pó retornaremos”. E os sinos se calam, cedendo à matraca seu som de rala harmonia, como se a vida mudasse e o medo do castigo ressurgisse como assombração de carnaval. Ah se os homens fossem menos formais em seus ritos e comiserações, e se reconciliassem melhor consigo próprios! “Não faças aos outros aquilo que não gostarias que te fizessem a ti. Essa é toda a Torá, o resto é comentário; agora ide e aprendei.” Gritou Hilel, um dos derradeiros profetas do judaísmo tardio, poucas décadas antes de nascer Jesus de Nazaré. Alguém desafiara o ancião profeta a resumir toda a Lei, num ensinamento curto que fosse aprendido por alguém de pé, apoiado sob uma única perna. E o ensinamento de Hilel permaneceu sábio, rápido e simples, embora venha sendo continuamente violado. Violação que perdurou, mesmo após a posterior imolação em amor de Jesus, o Filho de Deus. Mas, a Quaresma chegou convidando a repensar a vida. No mais, a inexorabilidade do movimento lunar já definiu todas as datas. Quando o carnaval vira saudade, só sobram as cinzas, trazendo o luto dos paramentos. A modernidade não cerra mais o cenho, não vela a dor, nem a tristeza, e já não recobre as imagens de roxo na Quaresma. São coisas dos tempos idos de minha meninice, quando a Igreja não se ressentia do cantochão medieval latino e das acusações profanas de idolatria. Hoje, querendo ser muito agasalhadora e aberta ao vulgo e ao vago, estiola-se no abandono do sacro, secularizando-se no lugar comum dos céticos e indiferentes. Enveredando até mesmo na política abraçando um viés demagógico, por socialista. Está melhor assim? Os homens se amam melhor esquecidos da condição humana, sorvendo o licor inebriante sem culpa? Qual deve ser a pregação quaresmal se o seu ápice final, a Semana Santa, virou um novo tempo de feriados, uma estação de alegrias turísticas, um bom negócio de gastronomia e hotelaria, e as procissões transformadas em passeatas de excedentes excluídos? Eis uma reflexão que perdeu o sentido. E a Quaresma nos convida a refletir sobre a nossa vida, sobretudo daquilo que somos responsáveis exclusivos. Porque o além de nós é uma consequência do que nos é interior. Tudo isso sem querer ser santo e sem ousar transparecer santo. Que nesta Quaresma, Deus não me redima de toda maldade. Não quero perdê-la de todo em nome de uma santidade não desejada, A ser santo, melhor é ser humano, assumindo os próprios erros; e nada mais!
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